O QUE NOS SALVARÁ? UM NOVO HUMANISMO?

 

Queria ter escrito sobre outro assunto, até tinha me preparado para isso, mas com a ainda disseminação do coronavírus matando pessoas pelo mundo inteiro, dei-me conta de que meu assunto atrás era insignificante, nesse momento, e senti-me até como egoísta e traidora da realidade se não me debruçasse mais uma vez nos fatos que continuavam na ordem dos dias; e naquilo que pensava escrever, ficaria para depois – e assim vai ficar.

Pepe Escobar, o conhecido analista geopolítico brasileiro ao ser entrevistado recentemente por Leonardo Attuch, editor da web 247-Brasil, falou sobre o que poderia nos salvar frente às mudanças, que com certeza passarão, pelas consequências desastrosas que a pandemia deixará no mundo – o que me fez pensar: ou não vão haver mudanças visíveis? Seguirá a máquina do capitalismo como nunca vista antes de vento em popa? Será o tempo de uma desenfreada reposição do capital, custe o que custar? Contudo uma coisa é certa: a economia neoliberal implantada por grandes países – principalmente ocidentais – revelou que o modelo de sobrecarga de capital entrou em dificuldades. Um tapa na cara do capitalismo industrial que se viu forçado a sair de seus moldes de produção e acumulação em favor de necessidades extras? Seria então a chance para os grandes capitalistas, os donos das riquezas do mundo tornarem-se um pouquinho mais socialistas. Aqui não me refiro às famosas doações de pelo menos um por cento de suas fortunas às vítimas da pandemia. Não. Mas já um abrangente olhar atento às suas injustas arbitrariedades, ou um leve prenúncio de mudanças em favor dos injustiçados – para não dizer claramente: é hora de pensar numa outra ordem econômica mundial, e não mais aquela errônea forma de distribuição de capital. É hora de admitir que a sua avidez é responsável pela exploração física e psíquica de homens, mulheres, crianças de todas as idades, no mundo todo. Estou sendo utópica? Não gosto desta palavra, soa-me mais que uma irrealidade, uma impossibilidade. Prefiro crer que estou sendo humanista – uma nova humanista.

Sopa de Wuhan, assim se chama uma coletânea de artigos de publicação independente e online sobre o que pensam diversos intelectuais, filósofos, analistas políticos como Slavoj Zizek, Byung-Chul Han, Giorgio Agamben, Judith Butler, David Harvey, Paul B. Preciado e outros sobre a crise atual do coronavírus. Slavoj Zizek – filósofo esloveno – referiu-se a esse momento como uma abertura de vias ao surgimento de uma nova versão do comunismo. Pepe Escobar, que tinha recomendado essas leituras, disse que ele errou – também acho, apesar de entendê-lo. Mais crítico com Zizek foi Byung-Chul Han, filósofo coreano-alemão, residente e professor universitário em Berlim disse: Não é que o vírus foi como um tapa no capitalismo, evocando já um comunismo, e que o vírus até poderia provocar uma queda no regime chinês. Nada disso vai acontecer e Zizek está enganado, escreveu Byung-Chul Han. Compreendo Zizek, sua profunda veia marxista o leva a sonhar, apesar de que ele tenha apresentado dados concretos como as medidas emergenciais de governantes, ajuda financeira, produção de implementos hospitalários, como também o ter-se dado conta da necessidade de um sistema de saúde eficaz e global, – mas será que essas medidas vão continuar mesmo depois de passada a pandemia?

Eu já me perguntei muitas vezes de onde teria vindo esse coronavírus capaz de mutações. Não o faço mais; dou-me conta porém, do quanto ele passa ileso de ter sido um castigo de Deus. O vírus HIV ou HIV que causou o síndrome da AIDS, aparecido na década de 80 do século passado, pelo contrário foi também, para os fanáticos religiosos, uma punição do Divino a aqueles que praticavam aberrações sexuais de natureza sobretudo homossexuais e vícios com drogas. À sífilis dos séculos XVI ao XX também foram atribuídas causas por procedimentos indecentes e indecorosos, principalmente as práticas de relações sexuais fora do matrimônio, a procura de prostitutas de rua e as visitas exacerbadas aos prostíbulos, apesar de que as locomoções de soldados durante as guerras, as condições sanitárias e de higiene e mais a falta de um medicamento eficaz foram o que disseminou a sífilis na época. Mas agora desta vez não fizemos nada de errado para ser castigados por Deus? Talvez tenhamos desenvolvido tantas tecnologias cibernéticas de controle e de inteligência artificial capazes até de nos substituir, e acessado tanto de forma digital informações que merecemos ser vigiados como punição?

Paul B. Preciado, um filósofo espanhol, transgênero diz, com base em Miichel Focault, que as epidemias são formas de materializar nos corpos dos indivíduos as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num período determinado. Eu entendo que as epidemias tornam visíveis em cada corpo que tipos de preocupação e empreendimento geram as políticas de vida e de morte de uma população num certo período. Assim segundo Preciado, a sífilis de então materializou nos corpos de cada um as formas de repressão e exclusão social que dominavam na política patriarcal e colonial da época – as obsessões pela pureza racial, e a proibição das chamadas uniões mistas, entre pessoas de raças e classes sociais distintas; e as restrições que pesavam sobre as relações sexuais.

Então, como entender, a partir da pandemia do coronavírus que ora passamos, as medidas que nos impõem para seguir durante essa crise? Como entender as contradições dessas medidas com base numa visão histórica e crítica política? Se por um lado sabemos que se os governantes nos mandam voltar às ruas, ao trabalho, à „vida normal“, isto leva a correr risco de infecção e até morrer, contudo o mercado não pára e os homens voltam a ser máquinas subordinados à produção. Por outro lado os dirigentes da saúde pública nos aconselham a permanecer em casa, nos obrigam ao isolamento em detrimento da maioria dos meios de produção e de consumo – é uma situação paradoxal, a qual nos enfrentamos, e o que nos ajudam são só os fatos de ambos os lados. Mesmo assim sabemos que a imunidade não vem do fechamento das fronteiras, nem de distâncias. Esta vem, como bem diz Preciado, de uma nova compreensão do que é comunidade; de um novo equilíbrio entre todos os seres vivos – ele atualiza as palavras „seres vivos“e
sai do político nacionalista e de identidades; evoca um parlamento, mas um parlamento planetário, de corpos vivos, que vivem no planeta terra, e não em países individuais.

Para um futuro mais humanista está em jogo sermos contra ao estado de exceção e vigilância, sermos contra ao implante de nanochips em corpos humanos e sermos contra ao capitalismo destrutivo que só destrui o nosso planeta terra. Assim poderemos enfrentar melhor as epidemias, que com certeza, ainda virão.