E o nosso feminismo daqui pra frente?

       

„Eu amo a senhora.“ Ao ouvir a frase que não era uma qualquer, mas uma declaração de amor vinda de um homem bem mais velho do que ela, o qual conhecia só há uns tantos, não teve nenhuma surpresa, infelizmente já a esperava, sabia que algum dia iria ouvir de malgrado o que era inevitável: „Eu amo a senhora, e com isso gostaria muito de tê-la ao meu lado; quero pedir-lhe que seja minha mulher, caso essa idéia também a encha de satisfação. Quero pedir-lhe Etna que se case comigo. Sei que o que estou pedindo não é uma surpresa para a senhora, mesmo assim peço-lhe que se dê tempo para decidir-se; saiba que um sim de sua parte, me faria o homem mais feliz desta terra.“

Esta cena eu não a vivi; ela tampouco cabe mais nos nossos dias atuais; ela não é real – apesar de ser convincente – ela foi tirada – sem ter sido traduzida – de um dos romances de Anita Shreve All He Ever Wanted – Tudo O Que Ele Queria – seria mais ou menos o título em português (eu o li, porém, em alemão), publicado pela primeira vez em 2003 nos Estados Unidos onde a escritora nasceu e faleceu aos 71 anos em março deste ano. No fundo Anita Shreve não é a minha escritora norte-americana predileta; o título me pareceu um tanto brega, como de um romance cor-de- rosa, melodramático, sem exigências e desafios; o que me levou a lê-lo porém, foi a curiosidade por se tratar de uma estória que se passa no século passado, focalizando um homem maduro e apaixonado, e uma mulher que de leve tateia sua emancipação pelo puro direito de poder escolher a quem amar, numa época em que os casamentos ainda eram obras de decisão dos homens. O livro é narrado em primeira pessoa, pelo homem, Nicolas Van Tassel – o que não foi uma escolha aleatória da escritora – descendente de holandeses, professor de literatura inglesa e retórica ele é quem conta a estória, a sua própria história entre os anos de 1899 e 1935, sua paixão, seu amor obsessivo, ciumento e calculista por Etna Bliss, uma mulher de uma beleza especial, jovem e que nunca chegou a amá-lo, apesar de ter se casado com ele, e com ele ter gerado dois filhos (depois o enredo me fez lembrar e encontrar paralelos com Machado de Assis em Dom Casmurro). Mesmo sendo ela, Etna Bliss, o centro das atenções do narrador, aparece na estória como em pano de fundo, como imaginada e conduzida por ele, com raras reflexões e voz própria, incapaz de expressar o que sente. Subordinada ao discurso do narrador, ela está em suas mãos, moldada à forma que ele lhe dá, e não a que ela mesma subscreveria – mas não é este o modelo convencional da mulher daquela época? – E assim está exposta Etna Bliss, apática e estagnada pelos seus sentimentos ocultos, confinada às tarefas de benfeitora do lar e da caridade – mas nem sempre leal, como era de se esperar – e mantendo uma relação com o marido que funciona bem durante o dia, mas tornando-se fria e distante de noite, no momento da intimidade do casal. Seus breves diálogos com o marido me deram raiva – como tive raiva dela pelas suas abstenções e pelo seu silêncio pesado e constrangedor. Não é que Nicolas Van Tassel se desenvolva como um macho tirano – ele é até certo ponto condescendente – seu intenso desejo sexual e de ser amado por ela não o permite extrapolar os limites de sua decepção, pois os desejos se transformam sempre em uma nova esperança.

A literatura do século XIX estava comprometida com a sociedade que era na época um palco extraordinário para os literatos: o crescimento da produção industrial, as aplicações monetárias, as drásticas diferenças entre as classes, e seus conflitos, as relações amorosas,  foram usados como temas que nos deram até hoje um retrato da sociedade em forma de romance social. Mesmo que um tema, como entre outros o amor, o dinheiro, a política, possa subsistir no tempo, ele não permanece invariável por mais que ele seja verdadeiro – e um tema tanto é verdadeiro, como é para todos – o que muda é a forma de reconhecê-lo e interpretá-lo num dado contexto social e político e numa dada época. As reações de uma jovem que leu o romance de Leon Tolstói, Anna karenina, quando ele foi publicado na Rússia entre 1877 e 1878 e com uma jovem também russa que o lê nos dias atuais é bem diferente; assim como se acontecer se a jovem que o lê é brasileira – o que não é muito frequente – ela vai reconhecer sobretudo o amor de forma malograda de Anna karenina e dar-lhe novos contornos segundo suas experiências e capacidade crítica ao confrontar a estória com a sociedade atual, apontando novas soluções e até levada a corrigir comportamentos se a leitura a estimula, ou poderá até se divertir com alguns personagens e costumes de então – mas não é isso também que faz uma obra subsistir, quando ela ganha novas interpretações através do tempo? Li num blog que Tolstói não sabia que a sua obra iria chegar até hoje e fazer pessoas „chorar, rir, e apaixonar-se pela vida“, como ele mesmo disse; se alguém lhe tivesse dito isso, ele teria dedicado a sua obra a toda sua vida e as suas forças, afirmou. Quando assisti ao filme Madame Bovary de Claude Chabrol – tendo Isabelle Ruppert no papel de Emma Bovary, reparei com espanto que mulheres riam com desdém da personagem, me deixando irritada no momento por não ter compreendido no momento o quanto ainda havia dogmatismo entre as mulheres nos anos 90, ditas feministas. Anos mais tarde a velha personagem de Gustave Flaubert foi atualizada em Little Children – em português Pecados Íntimos – dirigido por Todd Field. No filme Emma Bovary é apenas mencionada por uma mulher jovem, casada e mãe – Kate Winslet no papel – num grupo de leitura com outras mulheres de idades diferentes. A jovem se reconhece no drama da personagem por também estar vivendo no momento uma relação extraconjugal e, ao contrário das outras mulheres, sem fazer julgamento, ela avalia o comportamento de Bovary livre daquele carácter de mulher fácil e desmiolada de então. Novos valores geram novas interpretações, e quem diria que Madame Bovary não ganhasse por fim a marca de feminista? O filme não termina numa tragédia; a jovem não precisa suicidar-se, como Emma o fez por vingança, por desespero, ou mesmo por não ter podido suportar o excesso de narcisismo; pelo contrário, após esse reconhecimento, ela se afasta de qualquer intenção de culpa ou de justificar-se pela sua infidelidade, o que isto impede o suicídio e faz ganhar a reflexão.

Etna Bliss não optou por se tirar a vida, preferiu abandonar o marido e os filhos – um ato impensado, movido pelo desespero, por vingança e por tantas abstenções e renúncias que no fundo não a favoreceram em nada. Ela não só foi vítima dela mesma, como também de sua época; seus anseios não eram tantos, e Etna se considerava com o devido direito de realizá-los – por quê não? – Etna nasceu um século depois da Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776 que promulgava entre outras verdades o direito à vida, à liberdade e a aspirar à felicidade, porque todos os homens são obras do Criador e por isso têm os mesmos direitos. São palavras tão abstratas como uma escultura que configurasse cada um dos termos evidenciados: vida, liberdade e felicidade – um idealismo – a quem „todos os homens“ está referido? Também às mulheres? Etna queria ser feliz vivendo o amor ideal, que para ela, era aquele desencadeado pela experiência erótica, e assim o experimentou intensamente, mas por infortúnio foi abandonada pelo amante – daí o casamento sem amor ao marido como uma vingança – a si mesma? Ao marido? A insatisfação de Nicolas com a frieza de Etna, ele aproveita para desviar a atenção de sua própria falta de habilidade na cama; seu desejo sexual não dá para acender uma chama de amor no corpo dela. Etna todavia ainda apelou à liberdade de possuir um bem, quando usou o dinheiro de um quadro herdado para comprar uma casa, um retiro, onde ela pudesse apenas experimentar estar livre através de atos simples: costurar à mão, tomar um chá, escrever cartas, ler, descansar. No entanto foi seguida pelo marido que a descobriu, desvendou seu refúgio e acusou-a de mentirosa e traidora. Depois só restou a Etna a vida – a vida pela vida – e por esta, para não morrer – por que teria que repetir a tragédia de Anna Karenina e Emma Bovary? – ela foi embora – abandonando tudo e todos – na esperança de ainda reencontrar-se naquele amor tão aspirado.

Por que as estórias de Anna karenina e Madame Bovary não passaram como erroneamente pensamos? Uma prova aparente são as refilmagens dos romances: Anna Karenina foi filmado onze vezes e Madame Bovary nove. Também as traduções são muitas, e cada uma que reaparece é uma tentativa de aproximar mais a linguagem do escritores aos nossos dias sem que os conteúdos sejam alterados e as sequências das ações sejam modificadas. Outra prova mais convincente é quanto o romance do século XIX é grandioso, e chegou a um auge talvez não alcançado e superado em outras épocas: o avanço técnico e científico não só favoreceram as guerras, mas também abriram as possibilidades de poder controlar tudo ou quase tudo; daí também se explica porque o papel do narrador do século XIX, sabedor de tudo e que controla tudo não é gratuito. E ainda mais: o fascínio que essas estórias nos exercem; além de serem os romances um espelho das relações sociais do século XIX somado à maestria estilística dos autores, também nos sentimos atraídos pelos seus dramas e tragédias, pelos amores e sofrimentos das personagens, porque tudo isto está dentro de nós desde muito cedo: o medo, o prazer ou os tabus, tanto a vida como a morte nos atraem, porque a vida não é somente os feitos, mas ela tem um fim. E por fim: Karenina e Bovary – Anna e Emma – não morreram para nós mulheres, suas tragédias também despertaram interesses nas feministas, como fonte de questionamento de como anda a consciência da mulher, a nossa consciência hoje.

Até as tragédias e os dramas nos mostram que nem tudo está perdido, resta sempre algo que daí pode ser um reinício; a memória, as experiências, os ganhos e as conquistas promovem os movimentos de mudança, mesmo quando estes parecem mais um retrocesso. Quando uma mudança social vem de um ato do legislativo, esperamos que os resultados dela sejam rápidos e evidenciados, para nos sentirmos seguras. Por outro lado passamos por situações diárias – em casa, no trabalho, nas aulas, em festas, na rua, etc. – que ainda estão longe de serem reconhecidas e classificadas como portadoras de agressões verbais, sexismo ou racismo. Para estas situações as mudanças são mais lentas e dependem sobretudo de nossas atitudes e reações. Um silêncio pode ser entendido como uma aprovação, e assim deixamos passar o momento de falar e atuar e acumulamos mais abstenções. Quantas vezes não voltei pra casa com raiva de mim mesma, decepcionada, porque me esquivei frente a outros e não disse o que queria e devia. Achava que se falasse, iria chocar o público, ofender pessoas e todos iriam presenciar minha fúria – uma vergonha, no fundo. É que eu não estava preparada para essas situações e tinha medo das confrontações. Quando eu fui votar no primeiro turno da última eleição para presidente, atrás de mim na fila estavam duas mulheres conversando; a que falava mais alto, reclamava da espera e da má organização das seções, usando uma forma mais negativa do que condizente com a realidade. Isto me molestou porque vi que se tratava de queixas infundadas, pois a espera era normal por conta de mais eleitores, e o processo de chegar até a cabine estava visivelmente organizado. Como podia me calar frente a mentiras? Falei calmamente, expus meus argumentos, e por fim disse-lhe que o seu negativismo era desagradável e chegava até mim influindo no meu bom humor. Ela calou-se de vez, e a outra olhou-me admirada exibindo um sorriso leve de confirmação. Senti-me satisfeita com a minha ação, pois no fundo o que eu fiz foi opor-me a suas palavras que não estavam certas, e estabelecer uma fronteira. Mulheres também se abstêm de situações por não se sentirem capazes e seguras de seus argumentos, ou por vergonha de terem uma posição. No Brasil os termos feminismo e feminista ainda têm um sentido negativo, algo como incabível, exagerado, inflexível, e mulheres têm medo de assumirem essa posição, que para elas seria como se estivessem revelando algo sem valor e até proibido.

Por mais que o governo de Jair Bolsonaro vá recuar as forças democráticas, fechar os olhos para o bem do nosso planeta terra em nome de um liberalismo desenfreado, e não apoiar as mulheres na luta pelos seus direitos e contra o despotismo masculino, mesmo assim não vamos voltar atrás – porque isto é impossível – já temos o legado de nossas pioneiras antepassadas, nossas próprias experiências e sabemos que os direitos não são dados de presente, mas sim conquistados com muita luta. Vamos seguir.