AMAR É … CASAR É …

 

„É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.“

Mais explícita não podia ter sido Jane Austen ao começar seu romance Orgulho e Preconceito, publicado em 1813 na Inglaterra. O tema é óbvio para a sociedade da época, quando rapazes e moças – sobretudo das classes média e alta – se buscavam mutuamente também pretendendo  fazer do casamento um assunto vantajoso: elas se empenhavam em encontrar aqueles que lhes garantiria uma vida cômoda, retribuindo-lhes com um relacionamento invejável e uma família exemplar; e eles, sabedores de suas vantagens no assunto de casamento, podiam escolher, entre outros requisitos, aquelas com mais atributos de beleza. E o amor não contava além da segurança material e do laço conjugal? Claro. Os jovens também sonhavam com a paixão, com o amor e o afeto e desejavam que tudo isso viesse a juntar-se com o inevitável plano da segurança econômica e social. Jane Austen escreveu e reescreveu Orgulho e Preconceito por ter sido o primeiro manuscrito recusado em 1897; ao publicá-lo ela se absteve de sua própria identidade, mas também não deu ao seu livro um pseudônimo masculino, limitando-se com a autoria de By A Lady – Por Uma Dama. Jane Austen faleceu em 1817 e não foi a única a não revelar seu nome verdadeiro como escritora; um ano antes de sua morte nascia Charlotte Brontë; em 1818 e 1820 suas irmãs Emily e Anne – as famosas irmãs Brontë – que tiveram de recorrer a um pseudônimo masculino para serem publicadas. Outra, como a francesa Aurore Lucile Dupin nunca foi conhecida como escritora, ensaísta e crítica da sociedade da época, mas sim como George Sand que também se trajava de homem em público – fosse talvez isso mais cômodo?

No século XVIII mulheres escreviam sobretudo cartas, enveredavam em longas correspondências – onde a alma e os sentimentos protagonizavam – e faziam-se também de homens nas respostas. Havia já uma relativa produção escrita justificada por uma tal ociosidade das mulheres por permanecerem mais tempo em casa que os homens; também neste século incrementava-se a produção de objetos manufaturados e vendidos para diminuir os esforços de trabalhos caseiros como costurar, tecer, cozinhar, fazer pão e até sabão. O século seguinte assentou o romance de amor como a ficção de intrigas, dramas, sucessos e insucessos que envolviam um tema tão requisitado por mulheres – o amor – e havia mais vida interior que social – era como se só mulheres pudessem escrever sobre o que interessavam a mulheres. Como sorte ou azar a cultura de ler exercida por mulheres começa aí e ainda persiste no modelo deste tipo de romance: há muito mais escritoras de estórias de amor e sagas de famílias que escritores, e muito mais mulheres que homens que leem estes livros. Por quê? É a sensibilidade feminina como se esta fosse biológica? Claro que não. Isso tem que ver com o que as mulheres adquiriram na vida durante séculos: confinadas em ideologias discriminatórias e reduzidas a papeis pré-estabelecidos, as mulheres participavam menos das decisões sociais, alinhando-se ao que lhes restava como competência – os assuntos do casamento, do amor, da família.

Como quantidade não tem que ver com qualidade Jane Austen assistiu à virada do século dezoito para o dezenove com apenas 25 anos de idade, e a sua genialidade foi ter saído do esquema formal da época e de ter dado ao seu romance, sobretudo, Orgulho e Preconceito a qualidade de ter sido perspicaz ao tratar de um tema tão corrente na época como o de casar, mas com quem? Também o de ter mostrado o comportamento das personagens – às vezes ironicamente, outras as pondo à luz do orgulho ostensivo e da insolência – de ter posto em questão o que se acreditava como verdade, e de ter apresentado soluções para problemas que só desuniam os dois enamorados. Jane Austen deu a seu romance de amor muito mais que intrigas e fatos passados; sua lucidez com o presente é grandiosa para acertar na reflexão como indispensável antecessora de decisões; e mais, ela desmistificou a primeira impressão, o amor à primeira vista como provas de certificação do amor duradouro; enfim, não é o amor que tudo salva, mas o que precisa ser salvado.

Jane Austen é lida até hoje, seus quatro mais importantes romances – Senso e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito, Emma, Persuasão e Mansfield Park – já foram traduzidos em muitas línguas e filmados várias vezes; é a prova de que eles ainda alcançam necessidades literárias, sejam pela forma ou pelos temas tratados, quando lidos e contemplados hoje na mocidade do século XXI, nos dá a satisfação de termos superado esse tempo, no qual o casamento era sem dúvidas o meio de sobrevivência para a mulher deixar a casa dos pais e ganhar uma suposta falsa liberdade que só consistia em substituir o dono da casa: antes era o pai, depois o marido. Mas será que superamos mesmo esse tempo? Não é ainda hoje o casamento menos que um laço de amor, um contrato vantajoso para ele, para ela, para os dois, para os filhos, para a casa própria, para a aposentadoria, para os impostos? São inúmeros os proveitos que o casamento oferece, e ainda assim queremos justificá-lo com o amor, como se este tivesse o selo de existir recebido daquele até que a morte o desfaça. Este selo é real, ele é a certidão de casamento, e apesar de ele poder ser desfeito dando lugar a outro casamento ou não, queremos que só o amor nos una de verdade. Jane Austen sabia de tudo isso, e mostrou que é melhor salvar o amor do que esperar que este salve as complicações do casamento. Fica aqui a velha receita vinda do século passado.

 

Próxima postagem: 17/12/19