Mulher que sabe latim


⁃ De vez em quando dou uma olhada nos meus livros, principalmente naqueles que estão colocados na estante por trás dos que estão na frente – são os que eu já li. Num desses passeios de olhos encontrei um que há muito tempo não o tinha nem tocado mais: „Mujer que sabe latim …“. É um livro que tinha lido nos anos 80 quando morava no México, de uma escritora mexicana, infelizmente falecida ainda jovem, Rosario Castellanos. Sua morte trágica se deu em Israel em 1974 quando era lá embaixadora de seu país, e seu dito livro apareceu em 1973, ou seja, seu último livro publicado em vida, uma coletânea de ensaios inteligentes sobre literatura e feminismo através de retratos de suas representantes mais notáveis. Na época li seu livro com prazer; ele encheu do que necessitava a jovem de outrora, recém saída do curso de letras – eu – ainda faminta de leituras e conhecimentos gerais, em busca de exemplos que satisfizessem meus desejos intelectuais. Seus ensaios, só pelos títulos, exerciam um poder irresistível sobre mim, me abrindo a vontade de ler: „Virginia Woolf y el vicio impune“, Simone Weil, la que permanece en los umbrales“, „Betty Friedan: análises y praxis“, „Violette Leduc: la literatura como via de legitimación“ e a nossa „Clarice Lispector: la memória ancestral“ e outros mais.
⁃ Não venho de uma família que nutrisse o gosto pela leitura, salvo minha mãe que chegou a ler alguns romances em toda sua vida, e a bíblia, claro, mas mesmo assim acho que foi ela quem me serviu de modelo de aspiração a procurar na leitura um refúgio deleitoso. Bem no fundo porém, ler para mim significava adentrar-me por caminhos desconhecidos, uma forma de encontrar a liberdade; era como fazer da leitura uma viagem e um pré-requisito para a minha auto-determinação, um meio de superar-me e de superar restrições, mas não só isto, envolvia um ritual de procedimentos impostos pelo mero prazer de sentir-me ativa e consequente, repetindo esse ritual no meu dia a dia. Essa necessidade de ler, de inteirar-me e de saber das coisas era inevitável e reclamada outrossim pelo nível de discussões prestadas ao momento – por sorte tive colegas de universidade que escapavam da mediocridade intelectual e liam mesmo – e sem esquecer que vivíamos em plena ditadura militar; livros julgados de esquerda, exatamente aqueles que fundamentavam nossa ideologia, estavam proibidos ou eram mal vistos – só vim ver de perto um exemplar de “O Capital” de Karl-Marx anos depois de sair da universidade e quando já estava fora do Brasil. Sem embargo nos contentávamos em ler ensaios, interpretações, artigos sobre o marxismo, e lembro-me de que sem um certo conhecimento dele não se tinha chance de argumentar algo nas discussões políticas. Pertenço a uma geração de antes da internet, a chamada geração „Baby Boomer“ sem os vídeos, as fotos imediatas e a correspondência eletrônica de todos os dias; quando a vida nos privava de constância para aquilo que podia ser acessível sem demora: a informação como via para o conhecimento. As notícias nos davam os jornais, o rádio e a televisão, que tecnicamente estava muito longe da atual; até chegar a um livro, por exemplo, desejado ou necessitado era um fato de importância espacial e temporal: as visitas às bibliotecas levavam tempo; pegar um livro emprestado ou devolvê-lo, exigia, às vezes, tomar um ônibus para outro bairro. Esse emprego de distância e tempo que nos fazia esperar – o que não considero hoje como negativo – além de incitar mais a vontade de ler e a imaginação, nos ensinava a tolerar a frustração na falta da acessibilidade imediata. O idealismo era um valor para essa geração.
⁃ Não é assim que hoje em dia não precisemos mais comprar livros. Não. Mas à parte da literatura, já com bastante exceções, podemos recorrer à internet sem perda de tempo e in loco para obter as informações que queremos – eu também faço isso – e assim estamos inundados de informações, e estas estão à nossa disposição quase sempre a qualquer momento, mas também estamos à mercê delas. Imaginar uma vida sem acesso à internet hoje em dia, seria quase inviável mesmo para pessoas de gerações anteriores a ela. E tirar a internet daquelas que nasceram com ela já na mesinha de cabeceira, seria como mutilá-las socialmente – melhor não, pois elas pertencem a uma geração que não conhece um mundo sem a tecnologia digital.
⁃ Perguntar em que as gerações se diferenciam e o que elas têm em comum leva a considerar características, valores, objetivos, motivações e, hoje muito importante, os meios de comunicação. Como as gerações têm as suas peculiaridades marcadas pelo contexto histórico e social, também fortes disposições as conduzem a serem definidas como isso ou aquilo; é o que vemos nas restritas designações como “geração smartphone”, “geração facebook” ou “geração google“, ou seja, são descrições concernentes ao grau de avanço tecnológico que essas gerações podem usufruir dele. Com isso, para falar de gerações hoje é preciso considerar uma ou mais perspectivas, que sejam histórica, econômica e cultural.
⁃ Sei que posso reler „Mujer que sabe latín …“ no monitor do meu notebook; não foi difícil encontrá-lo pela google, só alguns minutos, sem precisar sair do lugar onde estava, e foi bastante dirigir com o dedo uma flecha que se transforma numa mão quando chega ao lugar onde o título está indicado, e depois pressionar o mesmo dedo aí. Pronto. Como num ato de mágica tenho diante de mim o objeto do meu desejo. Contudo não o quero, rejeito-o. Prefiro ir até a minha estante e pegar o livro amado, tê-lo nas mãos, sentir a dureza do papel, folheá-lo e deliciar-me com a edição velha de 1984.
⁃ De todos os modos também recorro a internet e vivo conectada com ela através deste blog, usufruindo de ter meu próprio espaço na web e com ele poder me comunicar com pessoas, ler e ser lida. Por outro lado, mesmo estando dentro dessa coisa, sinto-me à parte dela e insegura, como se tivesse pisando num chão que treme debaixo dos meus pés. Esse incômodo não é por não ser uma experta no assunto, mas sim por não saber vibrar com ela. Não uso a internet entusiasmada com os seus milagres, muito menos a considero tão normal quando antes eram os tomos de uma enciclopédia; na melhor das hipóteses não tenho nenhuma fascinação por ela.
⁃ Já a geração Z, ou seja, aqueles nascidos a partir de 1995 têm uma relação de bem-estar, fazendo da disponibilidade imediata algo natural, o que é normal. Eu, pelo contrário, apesar das facilidades e conforto que um PC trouxe a minha vida, podendo estar conectada com o mundo, ainda olho esta coisa com uma certa distância e desconfiada também; entretanto a geração Z está dotada para receber muitas informações de uma vez através das redes sociais; mas será que todas essas informações são absorvidas sem detrimento da concentração? Será que a atenção pode abarcar todas elas? No meu caso, essa avalancha de informações me leva, muitas vezes a perder-me, e preciso de tempo para filtrar o que é relevante para mim.
⁃ A eficácia do acesso à informação foi permitida pela velocidade de tempo dos meios digitais que se acelerou demais. Esse tempo diminuto usado para se chegar à informação de forma tão fácil e rápida é, a meu ver, responsável pela sua decodificação: perde assim a informação importância no seu conteúdo ao ter que ser compreendida rapidamente para se dar lugar a outra já a caminho? Se tudo que quero, o recebo sem esforço, então não existe mais a ânsia e a espera, que são responsáveis pelo sonho de se obter o que se deseja, passando a valorizar menos o objeto desejado. Assim se perde um elemento essencial na carreira do conhecimento que é o gosto e o prazer pelo conhecimento mesmo? São perguntas que me faço, as quais devem ser incompreensíveis para os das gerações Y, Z; são perguntas de quem leu „Mujer que sabe latin…“ e vibrou pelo seu conteúdo, mas que também procura compreender que as diferentes gerações têm suas formas de assimilar as coisas e estas são assentadas no solo dos valores culturais. Porém quem melhor falou sobre isso foi Voltaire: „Todas as pessoas são inteligentes; umas antes, outras depois.“