ADEONA (Parte 3)

Em meio a essa desarmonia e entre forças divergentes saiu do meio da rua e parou logo em seguida. Sua boca não era mais por onde ela deixava entrar o que lhe dava e garantia vida; era agora um talho cavado numa tábua, lá sem se mover, mas exibindo para fora sua existência. – Será que não encontrava lugar nesse mundo? Uma indagação perigosa num momento de crise; e por faltar-lhe capacidade de compreender a totalidade da pergunta, não a podia responder. Seus pensamentos eram visões que apareciam no meio da névoa; o resto era a poeira grossa e duradeira de um dia seco e quente deixada por um carro que, nessa estrada de terra, cobria a visão do mais na frente. Com a vista cheia desse pó, impedida de seguir, foi que percebeu que seu corpo esperava por ela, queria lutar mesmo estando curvado e as costas doloridas das torturas recebidas. Depois sentiu que estava em cima de suas pernas e seus pés eram como dois tijolos horizontais que sustentavam uma coisa. Não sabendo se iria adiante ou se retornava, ficou parada. E ficando ali sentiu-se assentada. Abaixo de seus pés era a terra dura e firme que a amparava e mantinha-a livre de um baque. Foi um breve alívio. A seguir seu pés não eram mais uma base de qualquer coisa, senão de duas pernas suas que continuavam se prolongando até um tronco, e este se abrindo horizontalmente em desenho de cruz. Sentiu que tinha dois braços e podia abri-los; entre eles estava seu centro que palpitava.

Adeona tinha a boca entreaberta, respirava por ela. Fechou a boca ciente desse seu ato. Um vento quente soprou de uma vez sobre uma árvore, inclinando sua copa e limpando-a do que mais não lhe servia. O coração ainda batia com força subjugando-a a um corpo sofrido. Um círculo no chão, porém, começava a abrir-se numa linha de regresso. Adeona achava que, como pulando para desviar de buracos na rua, podia voltar incólume aos dias anteriores a quando tudo isso tinha começado hoje na cozinha. Não era assim. Essa coisa assustadora iria ficar selada nela; uma memória de corpo e alma sendo transportada aonde é que ela fosse; às vezes como uma carga, outras como uma valise leve carregada na mão. A imagem desse estorvo deu-lhe medo, e quase prestes a sucumbir, respirou profundamente uma e mais vezes: – vou aplicar a respiração profunda, de que tanto já ouvi contar.

A tarde ao anoitecer já lhe parecia mais amena e até que ouviu um carro que passava em algum lugar; as folhas se tocavam trocando corícias; a sombra de um poste se impunha revelando sua altura e um pedaço de jornal no chão não acabava a rua ali mesmo. Seus pés se moveram, e ela toda empurrada por si já vislumbrava voltar para casa. Caminhou pesada evitando pensar muito, recordar o que tinha lhe acontecido, porque ela sabia do que havia provado, cuja consequência não podia antever. Só que o que lhe sucedeu, a ela pertencia, tinha vivido essa coisa como um pesadelo e depois acordado; tinha percorrido um corredor longo em desespero por ele não ter fim, mas agora ela estava ali e sentia que esse passado era tenebroso, mas era um passado. – Gosto disso. Gostou de ter despertado por ela mesma. Seu estômago já estava morno.

De volta e já em casa testou os sentidos, repassando todos os ângulos e objetos que encontrava com a vista. Estava exausta sim, mas também resgatada. Ainda insistindo em não voltar ao vivido, deixou prevalecer a força, aquele alume baixo e tímido; era só o que ela tinha de guia no sentido à liberação. E mesmo desconhecendo de que era feita a força, aceitou-a como um tesouro, ou outro objeto valioso que se sabe, se o utiliza em horas apropriadas. Foi um consolo revestido por uma respiração forte e funda. O corpo já era dela como a sala, os quadros da parede e a casa toda. Algum mar, onde é que ele fosse, dormia sob a vigilância de uma lua altíssima encontrada de vez em quando, e em alguns pontos do vasto oceano, por um farol velho e guardião. É que ela já estava guardada. Sentir-se com vida era a plena consciência de suas faculdades.

Adeona olhou o relógio de pulso verificando estar atrasada para as aulas. Muito atrasada. Inquietou-se com isso sem se deixar levar pelo temor de perder seu expediente de hoje. Veio-lhe logo a lembrança de procurar o filho de sua vizinha, um um rapazinho prestativo, tinha ouvido uma vez. Iria por primeira vez pedir-lhe um favor: Ele avisaria na escola sua ausência por sentir-se indisposta. Gostando da desculpa arranjada, sentiu-se pertencente aos humanos, e mais que isso porque havia experimentado da luta de existir e vencido por si mesma.

Adeona (Parte 2)

               

A sala de visita se bastava numa mesa, cadeiras, uma estante e um velho armário de madeira forte, salientando sempre a presença por sua natureza de apontar para o passado dela. Ele era o passado dela, irremovível e senhor do lugar que ocupava na sala. Ele que já foi uma herança de sua avó para a sua mãe e depois para ela sem discórdia. É que se pode discutir o que se passa de mãe para filha? O que se é ancestral? Adeona repetia essa cadeia sem resistir de ter se tornado nela mais um elo. O armário reinava na sala dominando uma parede, sua altura e feitio eram cúmplices do arcaico acordo nunca refletido. Era esse móvel estático o presente derivado do passado dela? Adeona apenas pressentia essa indagação. O armário era seu passado sim, e foi seu futuro antes de ter sido esse passado, e estava ali imóvel e firme sempre que ela o observava. Ele cumpria uma cumplicidade sem dissidência desde sempre.

Ela entrou na sala, abriu uma gaveta do armário e tirou uma colher. Ia servir-lhe para tomar um tranquilizante que não era mais que um líquido concentrado de vitamina B12. -Vitamina é fortificante e livra o organismo de mazelas. Era um eco do passado, e assim crendo esperou ávida o efeito. O tempo daí adiante lhe serviria de consolo a uma melhora, – ficar boa, mas de quê? Ainda trêmula, estava só experimentando da dor de ser ela. Sem futuro e com o presente em pânico. Compreendeu que sua paciência se esgotava. Não podia ficar esperando o remédio fazer efeito com a mesma calma de outras vezes. É que seu corpo não repousava; as pernas se mexiam como uma máquina; voltava a cabeça de um lado a outro sem intenção de ver alguma coisa, só porque não podia relaxar-se. Aí provou o pânico dos limites de seu autocontrole. Desesperou-se. – E agora? – Mais uma vez quis correr. – Estou louca? Que é isso meu Deus que está passando comigo? – Sem resposta e consolo imediatos, começou a buscar no corpo formas de safar-se. Isso era um estado ou a eternidade? Foi pior sentir que isso podia ser para sempre.

Resolveu sair para não sei onde. Já na rua andando, irrompeu uma dor no estômago ao compreender que estava retirada do cotidiano da vida do bairro. A padaria onde comprava o leite e o pão há tempo, agora lhe ameaçava. Não é que não reconhecia os lugares por onde passava, senão que estes não lhe davam a mesma solução. Ao contrário: eles a ameaçavam por não serem mais o meio requerido às pequenas necessidades de costume. – E a cara, como não devia estar? – Dura, desbotada e seca. A boca rígida escondendo qualquer tentativa de ar exterior. Caminhando deu-se conta de que não podia contar com ninguém. Suas atitudes até então tinham sido tão controladas que levavam a que todos estivessem de acordo com a sua total autossuficiência. – Mas ela era assim? – Ela se julgava muito e não alcançava compreender que „os outros“ também podiam ter dela uma idéia distinta da sua.

Ela via o chão sem calçamento, nu de asfalto era o desenho da eternidade daquele momento. Ela caminhava nessa terra irregular e cheia de buracos como se estivesse marchando pesada, com um saco nas costas, de cabeça baixa, os olhos viam apenas o que evitasse um tropeço. – Aonde iria? De repente reconheceu a escola onde trabalhava e parou bruscamente o corpo como se freia um carro em velocidade. Seu corpo mal podia aguentar-se erguido, as pernas moles tremiam e o pensamento adivinhava o perigo: – não vou entrar lá. – Tomou outra direção fugindo do que seria inevitável mais tarde: dar aulas. Adeona não sabia o que evitava, e foi quando se descontrolou parando e olhando duas direções sem poder decidir alguma. Correu um pouco fugindo da exigência do momento e parou adiante. Claro que existia algo dentro dela que a conduzia, puxando-a sempre para frente. Os bois levam a carroça mas não a guiam. Com ela era assim: quem a guiava era um desconhecido sem nome e face. Sentiu que desde o primeiro momento de seu inferno até agora não havia mudado nada seu estado de desespero; pelo contrário, ondas furiosas golpeavam pedras duras, sendo ela uma das pedras que recebia em cheio o tapão do mar. – As pedras também são fortes e adiam a vitória das águas violentas. Nesse embate o que parece mais frágil é o vencedor pela retirada do adversário. – Com essa crença, veio-lhe um breve alívio, um leve sopro numa ferida aberta, mesmo sabendo que ele não a sara. Depois a lembrança cruel, em quadros da via crucis do que já havia passado com ela hoje desde a cozinha até agora, voltando para devorá-la, sacudindo-lhe a cabeça e fechando-lhe a visão e os ouvidos. Um momento do sem fim.

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ADEONA

Explicação prévia

Mesmo já tendo tentado escrever ficção, contos, poemas não me achava com talento para tanto. Um dia mostrei timidamente um dos meus poemas a um poeta conhecido de minha cidade. Felizmente ele me fez botar os pés na terra quanto a minha verve literária. Disse-me mais ou menos: “Vê-se claramente projetado nos seus versos o pensamento linear e automático, desprovido de uma ação mental transformadora da linguagem.” Por um momento foi um choque esse esclarecimento inusual, direto e inteligente de minha pobre condição de poetiza, e mais, pude compreender o que significava o trabalho de escrever um poema, o que até aí não tinha idéia. Ele me mostrou um poema seu construído, claro, sobre outra base, que não era a minha, e não fez isso para me invalidar, creio, mas sobretudo para ajudar-me a sair do egocentrismo e da ilusão.

Numa outra fase de de minha vida, ainda uma jovem mulher, li quase tudo de Clarice Lispector (1). Estava obsessionada por ela – sua escrita, seus temas, seu perfil como escritora – tudo dela me enchia a alma, me deslumbrava. Pensava constantemente no que lia; seus textos me ofereciam imagens que formadas na mente preenchiam meus pensamentos, sempre dispostos a repetirem-se. Nessa altura, meu primeiro marido, um intelectual de mão cheia, concentrava-se nas minhas tentativas de explicar-lhe Clarice Lispector. Achava-a ímpar, sem que outro escritor pudesse competir com ela – não porque seus textos superassem outros autores, mas sobretudo pela sua temática. Clarice se arriscava até o limite da introspecção com o verossímil, numa ânsia de superar o subjetivo, deixando que o corpo se exprimisse; transitava por trilhas sutis da linguagem inaugurando um dizer coisas que, menos que excêntricas eram mais perturbadoras. Aliás ela pode perturbar pessoas despreparadas ao lerem algum de seus livros.

Até que a admiração não me bastasse, logo quis escrever como ela; outros motivos para criar algo em forma de texto não me interessava mais que as inquietações de suas personagens, suas dissoluções num agudo subjetivismo, suas crises existenciais. Não podia incorrer numa ação mimética de seu estilo, roubando fragmentos de parágrafos e partes de frases ou parafraseando imagens sugestivas; teria que ser eu, mas como ela. Queria criar um universo lispectiano paralelo ao seu, mas sendo meu, vindo de mim. A pergunta que não me fazia no momento era como e se era possível de tão enganchada que eu estava nesse impraticável projeto que nem me arriscava em começar a narrar, apenas escrevia frases que me chegavam de repente à mente, pois Clarice Lispector também escrevia aqui e ali frases, idéias que lhe ocorriam, e isso já era muito para mim, um bom começo.

Em 1992 entrei para um workshop de escrita criativa; era um grupo de maioria espanhola e alguns latinos; eu era a única de língua portuguesa. Aí eu evocava Clarice Lispector, já inundada de seus livros, esforçava-me por escrever algo dentro dos parâmetros de sua criação literária, contudo o esforço só me valia um distanciamento, nada tinha que ver com ela.

A HORA DA ESTRELA

Até que o dia da realização de escritora chegou. Não me lembro de ter tido antecedentes que me levassem às sete páginas escritas de um tirão. Sei que tinha uma idéia, um quadro não muito nítido, mas tinha um início que era a base de todo o texto. Sentei-me com folhas de papel já preenchidas na frente, só podendo usar o verso delas e comecei a escrever sem parar, como se o texto já estivesse pronto e só esperasse o momento de sair, de nascer. Foi um parto. Depois senti um vazio, e sabia que esse texto era o primeiro e o último. Era ao mesmo tempo o início e o fim de um projeto impossível. Não creio que se eu não tivesse lido tanto Clarice Lispector, impregnado-me com seus temas, teria podido escrever esse relato ou conto, o que até hoje não sei como classificá-lo. Não precisei de muito tempo para dar-me conta da magnitude de sua obra literária que eu não alcançava, de sua capacidade de transceder fatos corriqueiros, dando-lhes outro foco, desnudando-os da banalidade cotidiana ou do senso comum. Uma capacidade que eu definitivamente não tinha. Pude descansar.

O título do meu texto aqui é Adeona. Eu não sou Adeona, ela não existe, é um produto de minha cabeça, de minha imaginação com forte influência de Clarice Lispector. Vê-se isso na falta de ação e no estilo; o texto todo deixa fortes evidências de sua influência, mas com a diferença da mediocridade do meu, e da genialidade dos seus. O que passou com Adeona foi um colapso mental, um estado provocado por um grande estresse que não foi mencionado. Poderia escrever definições psiquiátricas de seu estado, mas valeria a pena para quê? A escolha entre o foco restritamente patológico e uma crise existencial de vida fica por conta de quem lê. Não foi minha intenção narrar um texto psicológico camuflado de metáforas, aferrei-me aos momentos cruciais vivenciados por Adeona – que foram algumas horas, depois do almoço? Não importa; esse episódio estaria presente em algum momento de sua vida.

(1) Clarice Lispector, nascida na Ucrânia em 1920, filha de pais judeus fugidos de perseguição durante a Guerra Civil Russa, chegou ao Brasil com sua família ainda de braços. Viveu em Recife e no Rio de Janeiro onde se formou em direito em 1944. Casou-se com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente em 1944 e teve dois filhos. Com ele, já diplomata, Clarice viveu fora do Brasil, Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. Além de romances e contos Lispector também colaborou em jornais como colunista e escreveu livros infantis. Recebeu prêmios e foi traduzida para 32 idiomas (dado de 1920). Faleceu no Rio de janeiro a 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário. Sua obra não é só intimista, envolve muito o social e o filosófico existencial; seu recurso técnico mais forte é o monólogo interior, muito usual em escritores que a influenciaram: Virginia Woolf, Franz Kafka, Katherine Mansfield. Ela foge em seus romances de padrões tradicionais como início, meio e fim e suas personagens principais vivem intensos estados de alma e situam-se quase sempre ao borde de crises existenciais, daí transcederem tempo e espaço. Suas obras mais conhecidas são:

Perto do coração selvagem (1944)

Laços de família (1960)

A maçã no escuro (1961)

A paixão segundo GH (1961)

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969)

A hora da estrela (1977)

ADEONA (Parte 1)

Sem ter mais a fazer, explorou o espaço com os olhos e viu que tudo na cozinha reinava em perfeita ordem. E isto era depois de ter lavado e guardado a louça no armário e mesmo depois de ter ficado sem fazer nada. Para Adeona, professora de escola noturna, isto era nada menos que repetir a imposição da rotina, buscar um acordo sem se esforçar muito. Adeona foi para a sala de visita e reiterou o prazer de suas marcas na organização, mas em vez de ficar relaxada, inquietou-se. Ela era como um vidro fino, frágil, que só de olhar tem-se receio de rompê-lo. Que fazer agora? Perguntou-se Adeona. O que tinha de dizer aos seus alunos hoje a preocupava menos, sabia tudo de memória pela força de tanto repetir. Quando de uma vez verificou que vinha repetindo as aulas desde anos, sentiu uma coisa quebrar dentro de si. Uma dor surda mas alarmante e pôde reconhecer como um prenúncio de algo mais forte. Imediatamente tratou de retraí-la, excomungá-la e liberar-se de seus abismos. No meio disso ao lembrar-se que hoje às sete tinha de estar na escola, foi só motivo para relembrar de que já tinha lembrado que vinha repetindo desde anos as mesmas aulas, as mesmas palavras. De novo a dor apontou no estômago de Adeona; uma faca veloz entrava na carne de seu abdomem abrindo uma ferida. Desta vez sentiu um amargor na garganta. Adeona deu-se conta de que não tinha movido seu corpo, nem tampouco tinha pensado em nada. Este momento foi um puro estado onde os sentidos foram substituidos pelo torpor.

Adeona sabia que tinha mudado, era verdade. Quis regressar ao momento em que havia estado contemplativa na cozinha, e aí percebeu que semelhante passado não volta e o tempo presente não tIinha descanso. Tal percepção ainda não a salvou; ficou mais alarmada ainda ante essa descoberta e sentiu que seu presente era um abismo. Ela quis mesmo refletir sobre o que lhe estava passando, mas uma névoa pesada e vagarosa, – dessas que acompanham seus pesadelos, dificultando-lhe os movimentos – agora a impedia de dar um passo adiante, o passo libertador. Sentiu que de onde estava não podia fugir, abandonar o local indesejado, o recinto abismal e incompreensível. Seus pensamentos não se aclaravam, nem a ajudavam, eram mais fortes que seu esforço de querer dominá-los. Adeona estava parada como um soldado plantado na frente de um palácio e quase não respirava. Pior: o resto da sala que podia perceber antes, agora se fechava e não havia mais o lá fora; ela se imaginou sucumbindo a esse golpe na alma e pediu socorro próprio ao ceder a voz muda. Do peito durava a dor; percebia a sala em quase penumbra – e porque era um dia resistentemente claro – e nela o tempo petrificado na imobilidade de seus objetos. Ela pôde olhar diretamente para a porta em frente querendo julgar o ambiente pela razão: é a minha sala de visita. A mesa, os quadros, o armário e a estante com livros diversos, a imagem de madeira comprada numa das viagens à Bahia. Ela estava ali, sabia disso, mas essas identificações eram como um carimbo fraco que sem relevar a superfície do papel, apenas o borrava. Ao mesmo tempo a imaginação ativada saltava de quadro em quadro em fração de segundos. Eram imagens inusitadas, vozes antigas, perguntas dos alunos, ela mesma se ouvindo em silêncio em casa. Adeona estava em transe, já tremia, tinha os lábios duros e entreabertos, apenas recebendo choques elétricos ininterruptos sem saber de onde vinha tudo isso. Interrogou-se procurando sair do lugar onde estava. Foi à cozinha de novo, abriu a torneira da pia e lavou as mãos e o rosto rapidamente, quase sem fólego. Quis voltar à sala, mas lembrou-se de que tinha sido lá onde tudo tinha começado, e parou perplexa. Então, ir ao banheiro lhe deu frio, e assim terminou no quarto. Vendo sua cama limpa e arrumada, viu-se doente num hospital e ninguém sabendo que doença era, apenas que suava, tinha convulsões e queria sair correndo não sabendo pra onde. Era que os olhos de Adeona só viam imagens que se faziam e desfaziam-se rapidamente e isso a automatizava, – mas não é que um robot precisa de comandos? Onde estavam os seus? – perguntou-se e com isso pôde sair do quarto, e a ponto de correr, como previra, estancou esgotada, ainda respirava com esforço, tratando de controlar-se. Foi aí que rogou tudo de si mesma, pediu a última gota de vida e quis soltar a voz por socorro, mas conteve-se de chamar atenção dos vizinhos.

Próximo post: Adeona (Parte 2): 07/01/2024

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