6 ANOS DE BLOG – E AGORA (MULHER)?

        

Desde março deste ano que cumpro uma ausência de seis meses no meu blog, sem ter sido ela causada por um dano maior. Foi tempo suficiente para elucubrações e para responder uma das minhas perguntas que mais me inquietaram nesse período: Por que cheguei a isso? Ou seja, por que me afastei por meses do blog amigo e querido? Sei que escritores, aqueles de romances de ficção e poetas, têm as suas famosas fases de bloqueio, verdadeiras lacunas sombrias de criação e carência verbal transformadas até em pânico frente a objetos habituais que levam à escrita, sejam eles um simples papel, um lápis, ou mesmo o computador. O medo, que sempre vem primeiro, instaura a apatia, é como se as mãos estivessem mudas e delas não saísse nada. Em rigor este não é o meu caso, já que não produzo nem poemas nem romances, basto-me, como feminista, com artigos de opinião sobre a condição de ser mulher e uns outros temas que me chamem a atenção.

Assim como os relacionamentos têm as suas renomadas crises dos sete anos, eu tive a minha com o amado blog já com os seis, como se estivesse numa dessas encruzilhadas australianas onde as setas podem apontar até pra China. Pois é, o próprio blog se voltou pra mim a perguntar-me „e agora mulher?“ por não vê-lo mais que uma uniformidade cansativa e abatida, para não dizer monótona, bem exagerando aqui como método para sair do encravamento que os anos me trouxeram. Tempo de parar? Não. Tempo de transformar um pouco a sua estrutura sem sair do plano inicial com que me comprometi. Mas para efetuar isso – eu que tenho alguns problemas com a técnica digital da internet – sei que sozinha não darei conta e preciso mesmo de a little help from my friends. Encontrarei?

Gosto de escrever, para mim mais que natural, é uma aventura em busca da forma, e isso está acima do próprio objeto do texto; e o meu querido blog dá-me essa oportunidade de conviver no mundo das palavras e das frases que tanto amo. Assim que esta postagem, no dia do seu aniversário, não é nem uma despedida, nem uma fixação de data para o próximo texto, mas sobretudo uma perspectiva para o que pode vir por aí. E mesmo não encontrando pessoas que me respaldem nessa empreitada, prometo que o blog continuará.

Um abraço da Mariluz

RESPEITO AO DIA INTERNACIONAL DA MULHER E AVISO A HOMENS QUE AINDA TÊM MUITO QUE APRENDER

   

Vivemos mesmo num tempo de revelações vazadas pelos meios digitais, incluindo aí as tão poderosas redes sociais. No Brasil um desses grandes vazamentos, a Vaza Jato – em 2019 publicado pelo site Intercept Brasil, mas procedente do hacker Walter Delgatti – foi o de mostrar conchavos ilícitos perpetrados pelo ex-juiz Sérgio Moro com seus promotores no seio da operação Lava Jato que culminou na prisão – também ilícita – do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De lá para cá não se salva um ano sem que algo escandaloso não venha à tona de parte de pessoas renomadas, seja um influenciador, um empresário ou um político, nos deixando pasmados e indignados pela falsidade e descaramento dessas pessoas e suas tentativas de saírem impunes, mesmo estando claro o conteúdo das revelações. É o que sucede agora com um deputado estadual de São Paulo que por conta de sua própria burrada falou coisas de teor sexista para um grupo de amigos numa de suas redes sociais e foi vazado sem dó.

Pois é, o tal deputado, o Sr. Arthur Moledo Val, também é um influenciador com um canal no youtube chamado ironicamente de „Mamãe, Falei“. Ele também é um dos líderes do MBL-Movimento Brasil Livre, uma força de direita reacionária, que ajudou a Jair Bolsonaro eleger-se presidente do país, e onde um de seus dirigentes, o deputado federal Kim Kataguiri, até já defendeu publicamente o nazismo. Estes e supostos processos na justiça são alguns dados pertinentes de seu currículo incluindo ainda sua pretensiosa candidatura a governador do Estado de São Paulo, mas que por conta das repercussões negativas de sua última fala vazada, ele a retirou pelo bem moral do seu partido, o Podemos.

Que foi vazado então do deputado „Mamãe, Falei“ em meio à prioridade que se dá na atualidade às notícias da invasão russa à Ucrânia? Exatamente algo referente a essa situação de guerra e a condição de pessoas necessitadas, sobretudo crianças e mulheres, que são as mais vulneráveis.

O „Mamãe, Falei“ decidiu ir cumprir uma missão especial viajando à Ucrânia com um companheiro do MBL e com dinheiro arrecadado de doações. Ele foi, como um bem humanitário, ajudar a construir coquetéis molotov para a população ucraniana contra atacar as forças russas. Tendo a missão cumprida com sucesso e saído do país, como ele mesmo alegou, achou de enviar um áudio a um grupo fechado de amigos, contando sua viagem. Só que em vez de falar dos males da guerra e do povo, ele se referiu só às mulheres ucranianas como lindas, deusas e fáceis; e por que elas são fáceis? „Porque são pobres“, segundo ele mesmo. Lá quando ele viu a fila dos refugiados, a comparou com a fila da melhor balada do Brasil, sendo que a primeira ganhava da segunda pela beleza das meninas. Seu tom de voz parecia o de um tresloucado, obsecado pelo que tinha de relatar sem que tivesse prestado atenção no que dizia. O cúmulo do alheamento mostrava que a sua principal missão tinha sido outra, e que seu desejo de voltar ao país não seria por missão política, mas sim pra pegar mulheres: „Já tou comprando minha passagem pro leste europeu assim que eu chegar em São Paulo“. É que ele no seu alienado machismo já tinha vazado um companheiro do MBL Renan Santos – como o tal que fala sueco e que viaja pro leste todo ano „pra pegar loura“, é a „tour de blonde“, „ele tem técnicas“ – mas só que „nos últimos três anos ele não fez“ esse tipo de viagem. Renan dos Santos lhe deu umas dicas importantes, como nada de pegar meninas nas „melhores baladas“ ou nas „cidades litorâneas“. Não. Ele precisa ir „pras cidades normais porque aí você pega as meninas“, „você pega no mercado, você pega na padaria“. „E essas cidades mais pobres, elas são as melhores“, claro que para conseguir mulheres. E continuando essa narração insana, cheia de exclamações comuns, mas de caracter subjetivo, como „oh meu Deus não é possível“, „é uma mentira, é um filme, não é possível“, „tou mal“, ele também revela como o macho é medíocre e insípido – foi, deveras, entediante ouvir sua fala.

O „Mamãe, Falei“ que foi pra Ucrânia como uma forma de sancionar a Rússia, está agora sofrendo sanções morais de todo lado. Seu partido repudiou suas declarações; seu apoiador a governador de São Paulo e desejoso a ser presidente do país Sérgio Moro, disse que com ele não dividiria seu palanque; a ex-embaixatriz da Ucrânia no Brasil, Fabiana Tronenko, postou um vídeo como resposta às declarações sexistas do „Mamãe, Falei“. Ela falou chorando que ele devia respeitar às mulheres ucranianas „seu vagabundo“. Disse que ele era um cretino, canalha, safado, ridículo, sem vergonha e de moral baixa, e que Deus que livrasse São Paulo de ter um governador como ele. Também o correspondente de guerra Jamil Chade escreveu-lhe uma carta aberta, comovente e autêntica desprezando as alegações discriminatórias às mulheres ucranianas. Até sua namorada, Giulia Blagitz, postou o fim do relacionamento dos dois, assumindo um certo fatalismo: „Infelizmente a vida é imprevisível e muitas vezes nos leva por caminhos que não compreendemos.“ Li num comentário que seu procedimento foi uma humilhação para ela. Eu acho que não só isso, mas que ela foi levada por tudo a ter feito tal declaração e tomado tal decisão. No fundo se pôs no papel de não ter conhecido a fundo seu namorado e pôde assim se defender em nome do amor: „Mais uma coisa podemos ter certeza: o amor foi real e sempre será! Obrigada por tudo que vivemos“.

O deputado „Mamãe, Falei pediu desculpas por tudo e a todos que ele ofendeu, mostrou arrependimento, mas segue se defendendo, alterando o significado de suas palavras, tentando mudar a ordem do seu discurso sexista e até negando o que tinha dito antes com relação a Renan Santos, o qual afirmou nunca ter feito na vida a tal „tour de blonde“ – no fundo um tipo de turismo por sexo. Como ambos sabem que é muito difícil sair completamente ileso dessa situação, apelam para tudo com fim de alterar o vazado, trazendo novas interpretações. O „Mamãe, Falei“ já deu nova versão aos tais „há três anos“ que o Renan Santos não viajava para o leste europeu. Agora são treze ou dezesseis anos atrás que ele não viajava mais. Ele disse que as pessoas confundem dois contextos, que no fundo são bem distintos: uma coisa é que ele viajou à Ucrânia com fim missionário e o cumpriu, e outra é que ele só mandou o infeliz áudio quando já tinha deixado o país. Ele quer se fazer de duas pessoas independentes, sem que uma interfira na outra. A separação do ser privado e do ser público para um político não é absoluta, os dois lados devem se complementar.

É de um descaro tal que mal suportamos ouvir de homens suas narrativas infundadas e mentirosas com o fim de parecerem corretos, cobertos de razão e donos da situação, porque no fundo as mulheres são as que atiçam, provocam, os levam a perderem a cabeça. Homens não levarem em conta os avanços que à luz do feminismo com seus esclarecimentos favoráveis podem tirar as mulheres da condição de passivas, submissas e dominadas pelo machismo e patriarcalismo é querer continuar nos seus espaços cheios de direitos e de dominadores impunes.

O poder da mídia digital e das redes sociais leva a que muitas coisas, que antes não eram reveladas, hoje apareçam nas mãos de quase todos. Assim foi em dezembro de 2020 quando Isa Penna sofreu assédio do seu colega, o então deputado Fernando Cury, ficou estampado no momento nos monitores da assembléia de deputados paulista, a famosa ALESP.
Depois foi o vergonhoso caso de Victor Sorrentino, médico brasileiro e influenciador que em 2021 numa viagem ao Egito postou na sua conta do Instagram um vídeo o mostrando ao ser atendido por uma jovem vendedora muçulmana que tentava explicar-lhe de onde vinha o papiro – simplesmente de uma planta comprida e firme. Isso já foi suficiente para que ele na frente de todos e em tom malicioso perguntasse a jovem „vocês gostam mesmo é do duro e do comprido?“ Momento de risadas entre os homens acompanhantes do Dr. Victor e a moça sem entender nada. O vídeo viralizou nas redes sociais e ele sofreu as consequências até sendo detido por autoridades egípcias e forçado a pedir desculpas publicamente. Depois ele, como tantos, contou num canal do youtube outra versão do acontecido, a sua versão para salvar sua identidade de pessoa pública e homem casado.

Hoje no dia internacional da mulher me preocupo por homens, principalmente aqueles difíceis de aprender, aqueles profundamente enraizados na tirania do patriarcalismo, na estupidez do machismo, na aberração do racismo e na cruel e impiedosa misoginia. Hoje reitero minha confiança nos movimentos que lutam para livrar as mulheres desses males e avisar aos homens que aprendam, aprendam a conviver bem com as mulheres, e isto é o melhor que eles poderiam fazer no mundo de hoje, porque não haverá passos atrás – nosso movimento já está o suficiente firme e avançado para voltar atrás.

Próxima postagem: 19/4/2022

ÂNGELA, que não era Leila, DINIZ e os 45 anos de sua morte

        

As duas foram contemporâneas e tinham um estilo de vida avançado demais para a conservadora sociedade da época sob regime ditatorial militar impregnado de censuras. Em junho de 1972 faleceu a atriz de cinema e teatro Leila Diniz num desastre aéreo na Índia de volta para o Brasil – um voo antecipado – por saudades da filha de apenas sete meses. A outra, Ângela Diniz – uma socialite, que ao desquitar-se fez acordos com seu ex marido, perdendo a guarda dos três filhos e recebendo, porém alguns imóveis em troca – foi morta em sua casa numa praia de Búzios, Rio de Janeiro por seu amante, conhecido como Doca Street em 30 de dezembro de 1976.

Desafiar o machismo e a prepotência masculina pode ser perigoso e exige tanto coragem quanto preparação e meios adequados para combatê-los – mesmo assim não há garantias. A tarefa do feminismo não é tanto fazer guerra diretamente, mas sim denunciá-los, desmascará-los, conscientizar as mulheres de seus poderes destrutivos ao abrir-lhes caminhos em direção a seus direitos – ainda assim não há garantias absolutas. As duas desafiaram, a seus modos, as convenções de uma sociedade machista e retrógrada; confrontaram homens; algumas feministas de então não as entendiam, não sabiam como integrá-las, pois ser livre para uma mulher podia ser muito perigoso e esse conceito, talvez mais do que hoje, não estava muito claro.

Uma mulher que falava abertamente nos anos 70, – „Sou livre, e daí?“, „Transo de manhã, de tarde e de noite.“, „Você pode muito bem amar uma pessoa e ir pra cama com outra. Já aconteceu comigo.“ – estava acima do convencional, mas era bem o forte de Leila Diniz. Só que nessas declarações, havia uma „revelação de vida“ – era saber ser „sem esconder o ser“, como escreveu Carlos Drummond de Andrade num poema dedicado a ela depois de sua morte. O coloquialismo de Leila, muitas vezes recheado de palavrões, chocava o conservadorismo de famílias de bem, assustava mulheres – e os militares ditadores também – Ela era a desbocada, a transgressora e até foi censurada por isso, mesmo assim sua resposta era sorrir mostrando o que é ser feliz como uma sábia experiência de amor à vida – „o riso aberto, a festa matinal do corpo, a revelação da vida.“ (Carlos Drummond de Andrade) É quando questionamos o que é pudor, e a falta dele expressar o que é ser feliz sem ofender o outro.

Já Ângela Diniz deixou sua marca no avanço das lutas das mulheres contra o feminicídio no Brasil, mas infelizmente só depois de morta. Pergunto-me quem era essa mulher além de ter sido coroada com adjetivos de acentos pejorativos, como provocante, sedutora, estimulante, irresistível para descrever seu comportamento? Isso era tudo?

Nos anos 70 do século passado qualquer um que tivesse visto a foto de Ângela Diniz na imprensa ou na televisão sabia que ela tinha sido assassinada pelo amante. Um crime brutal como tantos outros que acontecem no dia a dia brasileiro, onde mulheres são mortas por homens que defasados de seus papéis como marido, namorado ou companheiro não conseguem lidar com demandas e protestos de suas mulheres, nem acompanhar as mudanças significativas quanto ao uso de seus direitos. Com Ângela Diniz não foi tão diferente, só que na época seu assassino foi livrado de uma pena à altura por ainda prevalecer a idéia da legítima defesa da honra do homem defendida por seu advogado, o que em outras palavras significava que ele tinha licença para matá-la, para acabar com a sua vida, se o comportamento dela não fosse o desejado por ele. A crendice de que Ângela, por suas atitudes excessivas, levou Doca Street a matá-la é tão forte e convincente, que encobriu um ângulo seu que é para mim uma das chaves do crime além das provocações da Ângela. À parte de sua vida tumultuada entre festas, bares e viagens; sua inclinação ao álcool e às drogas; seus constantes affaire; sua necessidade libidinosa, deixando aflorar sua bissexualidade, havia também um fator considerável – a falta de objetivos comuns aos dois, um plano B de reserva que os unisse quando o auge da paixão declinasse. Doca Street era quem mais tinha desvantagem – ele que tinha deixado recentemente sua esposa e um filho por uma vida a dois com Ângela em Búzios, que iria fazer ao ser dispensado por ela? Acho que ela não tinha o que perder – era a dona da casa – e talvez até quisesse recuperar os filhos longe da tumultuada vida do Rio de Janeiro – mas isso só são especulações.

Segundo o Podcast Praia dos Ossos realizado pela Rádio Novelo, Branca Vianna ao entrevistar Doca Street, ele já com 84 anos, perguntou-lhe qual tinha sido a intenção dos dois de irem para Búzios. „Era de morar lá“, respondeu Doca. Branca Vianna insistiu: „E fazer o quê lá?“ E Doca: „Se amar“. Pois é, simplesmente morar lá e se amar. Uma vida sem objetivos é imatura, e o viver só de amor e sexo não pode fundar um relacionamento duradouro. E mais, como podia ter funcionado esse relacionamento de amantes começado só há quatro meses e forjado por más experiências de outros relacionamentos? Arrisco-me a dizer que nele só havia o desejo de acertar na vida por meio da paixão amorosa, mas quão infundado esse desejo, porque a predisposição e iniciativa de estabelecerem mudanças em suas vidas e compromissos que protegessem a aliança dos dois não existiam. E como podiam existir, se o que os uniu foi exatamente o contrário disso?

Eu era muito jovem quando morreu Ângela Diniz; o que li sobre ela não era muito diferente do que ainda hoje se diz repetidas vezes: era exuberante, mas também briguenta e desbocada; dava em cima de homens, sobretudo casados, e de mulheres também; gostava de sexo e praticava o ménage à trois. O que me intriga nisso é a impossibilidade de enxergá-la além dos limites onde ela mesma se deixou encaixar. Havia uma outra cara da Ângela que não saía nos jornais? Como recuperar esse lado dela, se ela mesma o guardou? Eu, que prefiro as verdades atrás dos fatos, por essas verdades da Ângela, me interessaria mais em conhecer do que o seu desbunde explícito. Pessoas que conviveram com Ângela podiam ter falado mais a fundo da amiga, se tivessem se esforçado a conhecê-la melhor, acho eu. O que falaram sobre ela no podcast Praia dos Ossos me pareceu muito superficial, deixando até muito a desejar – lacunas, dúvidas explícitas, incompreensões, mostrando até insegurança. O uso de „sei lá“, „não sei“, „eu acho que era complicada, mas sei lá“, foi intensivo. Por outro lado o escritor e jornalista Roberto Drummond a entrevistou em 1969 em Belo Horizonte sendo um dos poucos que captou sua extrema franqueza, „quase violenta até“; uma mulher „com os pés na terra, mas insegura, quase desprotegida“. Era a Ângela que se enchia de melancolia num dia apenas nublado: “Às vezes acordo de manhã, olho o céu e fico com vontade de dar uma morrida“. Ou ouvindo Maria Bethânia cantar “Pra dizer Adeus” tenta ser original, mas acaba repetindo um ilusório clichê do romantismo literário: „Eu me sinto toda nessa música. Acho que eu sou uma mulher muito fora da época. Sou muito sensível. Olha, eu acho linda aquelas histórias antigas com os poetas morrendo de tuberculose por amor. Eu devia ter nascido há muitos anos“.

Está claro que o legado que Ângela Diniz deixou foi o produzido após sua morte com o trabalho pioneiro de nossas feministas protestando nas ruas, até que o primeiro julgamento de Doca Street fosse anulado e ele levado a um segundo, onde recebeu uma pena de 15 anos – uma vitória que levou a mudar atitudes na sociedade sob o lema „Quem ama não mata“. Mesmo esbanjando sua liberdade de viver, seu destemor e sua franqueza, Ângela não se juntou às feministas de então – o Women’s Lib – não entendeu o movimento, achou-o insignificante, preferindo reduzi-lo a „mulheres frustradas social e sexualmente“, o que é compreensível para mim – sua forma decadente de viver jamais se alinharia com ideais feministas da época e fazendo-a repensar o que significa liberdade. Mas, ironicamente, foram essas mulheres que lutaram por ela, – não importando se „frustradas social e sexualmente“ elas fossem – conseguiram que sua vida, não importando como tenha sido vivida, fosse respeitada ao ser seu assassino finalmente punido.

Ainda acho que Ângela foi descuidada por seus amigos, negligência mesmo daqueles a quem ela poderia, pelo menos, ter ouvido. Na entrevista com Doca, Branca Vianna perguntou-lhe se alguém tinha intervindo entre eles, advertido os dois de riscos, enquanto eles já mantinham um romance às costas de seus parceiros. Ninguém. Ângela Diniz morreu pelas mãos do amante aos 32 anos; hoje faz 45 anos de sua morte.

Fontes consultadas:
Além de diversos artigos e vídeos expostos na internet, foi-me de grande ajuda o podcast da Radio Novelo – Praia dos Ossos.

Ernest Hemingway e a LGBT


 

À parte do escritor que ele foi, associo Ernest Hemingway ao clichê do homem forte, corajoso, vencedor, dominador e querido por muitas mulheres; um clichê incentivado por ele próprio e mostrado em fotografias que ficaram famosas. Mas era ele assim mesmo, ou já tinha prenúncios feministas? Aceitava já Hemingway, por trás de sua fachada, os homo-e-bissexuais? Pelo menos ele tomou esse tema num dos seus contos de 1931 – Sea Change para o livro Winner Take Nothing (O vencedor não leva nada), (1) um conto curto, entre 5 e 6 páginas, aparentemente não claro, mas bem revelador nas entrelinhas daquilo que ainda era um tabu na época: a bissexualidade. De um homem? Não.

De onde tinha Hemingway experiências nesse campo, ele que passou sua vida acompanhado de mulheres, chegando a casar quatro vezes? De sua própria mãe? De sua primeira esposa? – Como se fala. Em conversas com sua amiga Gertrude Stein, que era lésbica, ele foi nutrido do que é lesbianismo e o que isto significava na época. Por outro lado Hemingway, que cobriu duas guerras como ajudante sanitário e jornalista, tinha muito claro seu interesse nos fatos do presente, nos desafios e ações que movem as pessoas levando-as a perdas e ganhos, encontros e desencontros pela vida. No mais o conto parece ser um exercício de escritura a fim de estabelecer sua marca como autor, pois nele já há claro o rompimento com a estrutura tradicional, enfatizando o diálogo sucinto e dramático que dirige toda a narração; a falta de rodeios; a economia de descrições desnecessárias e a concentração no momento presente com preciso controle de seu desenvolvimento.

Eu que li muitos contos de Anton Tchekhov, e acho que Hemingway também os deve ter lido também, encontrei um paralelo entre os dois, sobressaindo o conto Sea Change do americano. Tanto neste como em Tchekhov não há um final satisfatório nem conclusivo, deixando uma brecha de continuidade que não vem. Assim em Sea Change, ao oposto de Tchekhov em seus contos, não fez Hemingway do seu tema – a bissexualidade – um material de reflexão, apenas o entregou à competência do leitor sem comprometer-se diretamente com ideologias, isso porque o próprio tema está subentendido. Ele não se esforça em analisar seus personagens, nem contar-lhes seus passados, tudo está passando no momento presente guiado pelos diálogos e rasas descrições que nos insinua quem e como os personagens são.

Um rapaz e uma moça, ainda bronzeados do verão, conversam sobre o fim de seu relacionamento à mesa de umbar em Paris. Não sabemos do problema que leva à separação dos dois a não ser sutilmente pelo que eles dizem um ao outro. O rapaz que está contra ao motivo do desenlace, a culpa por isso, e ela para acalmá-lo, tenta fazer com que ele a aceite, assim como ela mesma aceita sua realidade. Após uma breve descrição da moça, o rapaz diz „vou matá-la“, e é aí que sabemos de que se trata de uma mulher na vida dela, um caso amoroso entre as duas e abominado por ele: „Tinha que ser precisamente isso?” “Você não podia ter caído em outra coisa?“ A moça é bissexual, ela ainda quer voltar pra ele, apela pra isso; o rapaz, ao contrário, está metido nos modelos masculinos da época, bem mais fortes e evidentes que hoje – é que nos anos 30 do século passado ainda não havia discussão de gênero e o feminismo apenas apontava levemente. Contudo deixa Hemingway um claro contraste entre os dois quanto à posição de quem está na vanguarda das mudanças sociais: ela, a mulher que defende seu direito de ser o que quer e agir como ela quer. O autor, porém não a destaca em suas prioridades, deixando que o conflito de diferenças entre os dois se estenda em paralelo até que a postura resoluta da moça seja atendida – ela o deixa, mas prometendo voltar.

Assim Hemingway já estaria pincelando o tema para a literatura? Sim e de forma implícita. No fundo dois temas que se correlacionam: a bissexualidade feminina e a questão de gênero. A primeira é denominada e compreendida pelo rapaz como vício e perversão, o que remete à postura da sociedade da época e a incapacidade dele de superar essa crença. Quanto ao gênero, tanto homens como mulheres têm seus papéis moldados e prescritos a modelos que lhes trazem extrema desigualdade. Onde há desigualdades, há diferenças contundentes entre aqueles que são superiores, fortes,mandões, privilegiados e os que não são. No caso, mais as mulheres têm sofrido e até pago com suas próprias vidas por atrozes discriminações. A moça do conto é agente de determinação numa sociedade ainda bem retrógrada, por isso sua fala é mais segura e objetiva, incluindo palavras de conciliação, mas estas não são em detrimento de sua liberdade, e sim como um esforço para ser aceita por ele.

Para mim Hemingway ou deixa o final do conto em aberto para nós leitores refletirmos segundo nossa capacidade, ou ele premeditadamente não quis dar um final claro por não se achar ele mesmo à altura, já que o tema outrora não era tão falado como em nossos dias. Por fim o rapaz consente que a moça se vá e deixa-lhe claro que os dois vão se ver após o caso amoroso ou a aventuradas duas. A partir daí ele se sente aliviado, como um novo homem e até se ver com outra aparência. Ele mudou tanto assim em coisa de minutos? Ele passou a aceitar as diferenças e exigências dela sem constrangimento? Para mim esse final liso e harmônico tanto pode ser uma trampa do autor em não querer se posicionar contrariando a masculinidade que ele tanto exibiu, como uma proposta antevendo que só saindo de convicções falsas, pode-se construir um futuro com mais justiça e igualdade. Para os que vão ler o conto, fica-lhes como entender o final antes e nos nossos dias.

1) Não encontrei o livro de contos Winner Take Nothing de 1931 em português, parece que ele está incluído em várias coletâneas de contos de Hemingway. Também não encontrei tradução em português para o conto Sea Change, eu o li em alemão.

O FIM DE EDDY – QUE NÃO FOI UMA TRAGÉDIA



„A dor da gente não sai no jornal“, (1) mas pode sair num livro ou no teatro quando o narrador lírico não se exclui de outros e propõe-se a revelar de si mesmo como liberação e testemunho. Só um olhar objetivo é capaz de reconstruir o que o corpo sentiu de humilhação e medo. E essa dor sofrida pelo outro nos toca se pesarosamente a imaginamos ou se assistimos a representantes dela a reviverem em seus corpos num intento de diluir o real no contado.

O Eddy-Projekt, um trabalho de teatro baseado nos livros autobiográficos O Fim De Eddy de 2014 e Quem Matou Meu Pai de 2018, ambos de Édouard Louis e encenado por atores jovens não profissionais do WABE Berlim, que é um espaço municipal no leste da cidade para realização de eventos culturais. A direção é de Alexander Weise e a música de David Schwarz.

Édouard Bellegueule, aliás Édouard Louis nasceu em 1992 e vivia com sua família no norte da França em condições de pobreza. Sua mãe era dona de casa, seu pai, como tantos outros da localidade, trabalhava numa fábrica e com seu mísero salário mantinha a família. Eddy, como era chamado desde pequeno, sofreu o que é a homofobia. Na escola foi perseguido sobretudo por dois meninos mais velhos que o escarneceram, o golpearam e cuspiram-no, só porque Eddy tinha trejeitos femininos, era frágil, medroso e falava com voz afeminada. Não o podiam aceitar, ele saia dos moldes de como um homem de verdade tinha de ser naquele lugar, e não um maricas, um veado, uma bicha. Estas palavras abjetas referidas a ele o acompanharam pela infância, era o que ele ouvia na escola e no vilarejo. Para sair desse tormento Eddy passou até pelo contrário de sua própria natureza, esforçando-se para corresponder o que esperavam dele. Não foi possível, e teve que seguir sofrendo.

Quatro dos nove atores em círculo recitam devagar o inicio do livro – resumo da via crucis de Eddy, – ele tinha nove anos e era novo na escola. Uma rajada de guitarra como numa abertura de um concerto de rock faz mover a ação, mais cinco atores entram eletrizados, e em frêmito expressam com a voz e o movimento do corpo o ambiente de seu sofrimento. O palco é o espaço do horror e Eddy entra em cena. Vemos e ouvimos sobressaltados uma mistura de vozes, a respiração ofegante de um asmático, uma tentativa de fuga. Era Eddy e seus torturadores, meninos já envoltos em violência – era a crueldade, a inclemência nas mãos de crianças que já começavam no pátio, nas escadas da escola a exercerem poder sobre Eddy. Os jovens atores dão de tudo para reviver nos seus corpos, o que Eddy viveu no seu único corpo, um corpo dolorido, reprimido, ainda sem dono, vivendo dele mesmo. Este – sempre o corpo – tem que encontrar nos atores sua expressão e ressonância, seu suporte e aprovação, e assim as ações deste corpo são variadas e repartidas entre eles, desenhadas em círculos, em passos automatizados, em costas curvadas, ou como um barril que rola e rola até topar-se com o próprio limite. Ou mesmo a inércia do corpo é encenada em corpos.

O grupo de atores forma um coletivo, um coro representando dois lados – todos são o fragmentado e desencontrado Eddy, mas são também seus algozes. As vozes discursivas são multíplices – os pais de Eddy, seus irmãos, seus colegas, seus carrascos e a comunidade – um coletivo de seres que vivem ao seu redor e que falam pelas bocas do coro. Todas as vozes são ainda seus velhos eus traduzidos por esse coro em tons de escárnio por falta até de compaixão: porque esta poderia servir, se não para salvar, pelo menos para aliviar. Mas não, o coro modula suas diversas vozes à mercê do que vem e surpreende o público, fala sem cansar, enfeia o discurso, faz revelações íntimas, e tudo isso em momentos, fatos alternados de ação e reflexão.

Um blogueiro brasileiro disse que o livro O Fim de Eddy está „repleto de gatilhos“ e ele só o recomenda a pessoas fortes psicologicamente. – Os brasileiros e suas obsessões psicológicas – Ele quis dizer que antes de ler o livro é preciso saber do que ele se trata. Os gatilhos são conteúdos sensíveis revelados em cenas de violência, abusos, levando o leitor à aflição. Por outro lado essa aflição, esse desconforto também não seriam uma expressão de indiferença? E esta é o menos que Édouard Louis espera de sua obra, ao contrário, para ele é preciso falar de racismo, homofobia, dominância masculina, abuso de mulheres e crianças e exploração de quem quer que seja, onde e como são produzidos. Também é preciso saber quem é o opressor, ter uma ligação com ele, para poder se livrar dele. Seu livro, menos do que uma confissão, é um depoimento de liberação, sem culpar ninguém, sem vangloriar-se de sua pessoa enfim libertada. Contudo o que levou Eddy à redenção? A vingança? Não. A coragem? Sim, mas não só ela. Entendo mais sua independência como sendo um aparato de disposições, estratégias, oportunidades, sejam quais foram, ditadas pela consciência de que o corpo não podia mais aguentar, pois aquela condição de vida e a dor por humilhações e golpes não podiam ser normalizadas nele como foram interiorizadas e estruturadas na vida de sua mãe, de seu pai, irmã, juntamente com a ira, porque „talvez a ira seja um critério de reconhecimento da verdade“, disse Louis.

A peça é longa, o público continua concentrado, mas também tem que fruir. Quando? Todos sabem que o desfecho é favorável ao autor com a sua saída da casa dos pais, da escola e do vilarejo. Os atores expressam mais ironia e confiança no corpo; a música traz mais estabilidade nos efeitos; o momento não é de autocompaixão, mas sim de liberação. Uma porta é aberta, a saída dos atores é simbólica: o Eddy menino se libera primeiro, enquanto o outro, já em processo de amadurecimento, sai depois. Tudo isso é mostrado na distribuição dos atores: primeiros os mais jovens e depois os adultos.

O que vem a seguir é a reflexão a posteriori, o ajuste de contas consciente com o pai, mas sem vingança e ódio. É a voz única e livre do autor de Quem Matou Meu Pai – Édouard Louis – apresentada em monólogo, mas desta vez por um ator profissional.

(1) da música Notícia de Jornal de Haroldo Barbosa e Luiz Reis. Foi gravada ao vivo por Chico Buarque e Maria Bethânia em1975.

Próximo Post: 30/9/2021

MÃES QUE NÃO SÃO MÃES?

          

Quando um homem comete um crime de homicídio ou um assassinato, e sendo até esse contra a sua própria família, toda nossa indignação e aversão a ele não se compara com a nossa reação de pesar e comoção dirigida às vítimas. Sabemos que o número de mortes cometido por homens é maior que o de mulheres, por isso à simples pergunta quem matou, nos vem sempre acompanhada de uma imagem masculina, não está na nossa cabeça de maneira automática realizar que foi uma mulher a autora do crime. Além dos presídios, os documentários, filmes e livros policiais também nos mostram a elevada presença masculina como perpetradores sozinhos ou em gangues. É um fato que homens matam mais, e por quê deveras o fazem é o mesmo que perguntar por que mulheres têm menos incidências criminais, e isto tem que ver com fatores tanto biológicos como sociais: homens estão mais expostos a situações de risco; o aumento do hormônio testosterona nos rapazes pode influir nas suas ações e os distintos papéis sociais dos dois, se levarmos em conta a predominância do machismo e do patriarcado que relegou as mulheres a seres passivos e obedientes demonstram que homens costumam resolver seus conflitos exteriorizando-os e até incluíndo outras pessoas neles. Já mulheres aprenderam a interiorizá-los, a serem mais meditativas e a solucioná-los sozinhas. É conhecido que mulheres podem ser capazes de acabar ou separar brigas de machos, se estes, então cegos de ira, não as golpearem primeiro – o que é raro.

Por outro lado mulheres agressoras e como fazedoras de delitos e de crimes contra a vida de outros, nos deixam pensar nisso como exceções. Casos de mulheres assassinas em série são raríssimos, pois geralmente quando elas matam é dentro do seu espaço domiciliar, não escondem o crime e deixam-se capturar facilmente pela polícia. E se uma mulher mata o marido ou companheiro, até aí podemos compreender seu drama se nos vem de pronto pensarmos na legítima defesa, ou para livrar-se ela e os filhos de abusos físicos e psíquicos dele, ou como vingança por infidelidade, ou por ter sido aproveitada e explorada sua confiança nele. Mas se ela mata um ser nascido dela, nossa reação é bem diferente: primeiro é um choque, ficamos sem fala, e sem que percamos o interesse pelo caso, o horror se propaga, sentimos ódio, ficamos indignados, queremos justiça, e tudo isso dirigido a ela, só a ela que rompeu o tabu sagrado de ser mãe.

Em setembro de 2020 na Alemanha, uma mãe de família matou cinco de seus seis filhos, um por um numa banheira, e depois de mandar o mais velho de oito anos à avó, jogou-se contra um trem numa estação de Dusseldorfia, na Vestefália, tendo sobrevivido a muito custo. Se ela foi capaz disso, posso imaginar sua depressão, o tamanho e a força de suas imagens conduzindo-a a tal ato. Ela não foi a primeira, e como ela todas têm uma história possivelmente marcada na infância ou adolescência com maus-tratos e abusos sexuais. No seu caso foi por um conhecido de seus avós quando tinha 12 anos; aos 15 anos engravidou pela primeira vez, e da relação com o pai só restou a criança. Com 19 anos ela é mãe pela segunda vez sem que daí o pai cuidasse do filho, ficando a jovem mãe solteira e sozinha com os dois filhos. Depois essa mãe se casa com um ex-soldado e com ele tem mais quatro filhos. Numa reportagem de revista vejo uma foto dos noivos, ela à maneira clássica vestida de branco com um buquê de flores brancas e fitas, ele de terno escuro. Os dois filhos dela também vestidos adequados para a ocasião. Atrás deles uma limusine branca a condizer – talvez como símbolo do desejo dela de ter um esposo, uma família e que a partir dali tudo vai dar certo. Mas o casamento também não durou; eles viviam num apartamento de quatro cômodos; o marido ficou desempregado e muitas vezes a deixava sozinha, sobrecarregada com os filhos e a casa, até que ele saiu de casa de vez. Um mês antes do trágico ocorrido, ele tinha postado no facebook uma foto com a sua nova companheira, uma vizinha do bloco residencial. Esse sentimento de abandono a acompanhou sempre – também a fez recusar ajuda do Estado – foi ele, acho, o propulsor de sua trágica decisão mais tarde, fazendo-me lembrar da Medéia de Eurípedes – dramaturgo grego do século V a.C. – que também cometeu um infanticídio por sentir-se traída e abandonada pelo homem que amava e pai de seus filhos.

Bom que casos como esse são raros, e mães separadas de seus parceiros e responsáveis pela custódia e sobrevivência dos filhos não terminam sempre em fatalidade. Contudo os motivos geradores de tragédias familiares, estão na base, prestes a desencadearem desgraças irreparáveis, requerendo atenção e interesse nossos. Uma moradora de um dos blocos de apartamentos perto da mãe falou com tristeza de suas próprias omissões, da sua falta de interesse em furar o gelo e aproximar-se dessa mãe sozinha com seis filhos. Esta seria a nossa participação, pelo menos em compreender sua história em vez de só referir-se a ela como uma pessoa estranha, e julgá-la moralmente.

Cada vez que nos detemos só no crime fica de fora o debate das causas e o avanço de medidas sociais efetivas em situações emergenciais. A pergunta é sempre a mesma: no lugar de pôr a culpa nessas coitadas – pois esta já está prevista no código penal – por que não buscar os quadros sociais e psíquicos exatamente geradores de estados nefastos? Em que condições alarmantes se encontram mães com risco de cometerem delitos graves? Criminalistas alemães já reconhecem algo como uma estrutura capaz de dar oportunidade a um ato de delito, ou seja, quando alguém está muitíssimo metido em uma situação negativa, como uma sobrecarga afetiva e material, e esta ainda relacionada com frustrações e sentimentos de anulação, é muito provável que apareçam daí atos de agressão. A coisa é delimitar esses espaços onde esses possíveis determinantes estão contidos. Uma grande tarefa, um trabalho difícil e pormenorizado, dependente não só do Estado, mas também de nossa responsabilidade social. Garantia absoluta não existe, só avanços em favor de uma solidariedade e justiça sociais.

Voltando à mãe mencionada, ela está por ora vivendo um processo que vai durar onze dias até seu julgamento final. Até agora ela tem negado sua participação no crime de seus filhos, alegando que um homem usando máscara entrou no seu apartamento e matou suas crianças. Uma construção psíquica para se defender da imensa dor, e fugir da realidade, acho.

CRISES DA VIDA PODEM NOS LEVAR LONGE

    

Se não fosse uma forte crise existencial que tive com pouco mais de trinta anos, eu não estaria hoje onde estou vivendo: longe do meu país de nascimento e longe do país que me acolheu quando deixei o Brasil.

Todos nós passamos por crises, sem que por isso estejamos enfermos; eu já passei por algumas de diferentes intensidades – elas também nos ajudam a sair da estagnação de onde nos encontrávamos, por isso precisam as crises de soluções, saídas que deem um rumo diferente a nossa vida daquele que era antes. Aprendi a entender minhas crises como um estado doloroso continuado até um certo ponto, onde eu pude enfim intervir com algo relevante – uma tomada de decisão, ou ter encontrado uma solução para o conflito que me afligia. Realmente se pode representar uma crise com uma linha vertical subindo até um ponto máximo e depois acontecer um declínio. Estudiosos chamam esse momento perigoso de clímax ou inflexão e é aí quando é preciso fazer algo positivo para que essa queda não gere uma catástrofe, ou uma depressão onde a tal linha representativa é para baixo necessitando de uma estabilidade no estado psíquico do paciente. Há muitas alusões às crises: estados psíquicos de liberação de energias, como um orgasmo, e físicos como a luta do sistema de defesas do organismo para vencer uma febre ou a fase crítica de uma infecção, antes do aparecimento dos antibióticos, por exemplo – eram os dias de decisão, dizia Hipócrates, médico da antiga Grécia.

Quando minha mãe faleceu, e eu não me encontrava a seu lado, esta foi a causa da crise mias forte que vivi. O fato de não ter vivenciado sua morte e minha consequente falta no seu enterro, me rendeu uns anos de desconsolo e depressão. Com ajuda de profissionais e boas leituras hoje sinto-me forte para reagir às lembranças, mas sei que a dor pela minha ausência e sua perda, a levarei para a tumba. A perda de um ente querido; a perda de uma base existencial, que é um trabalho, a perda de um lar, de uma moradia, ou acontecimentos repentinos, como uma doença grave, um acidente ou uma catástrofe são as causas mais extremas que levam a crises intensas.

Como uma crise não é uma depressão, mas pode conduzir a esta, podemos usar nossas forças para suplantá-la, antes que entremos num colapso, mas se elas não são suficientes – e muitas vezes não são – a ajuda de outros é imprescindível. Outra forte crise que passei foi ter perdido um emprego quando vivia fora do Brasil. Com ela tive de aprender novas habilidades para sobreviver, conheci mais o país e pessoas, fiz ioga, desenvolvi-me intelectualmente – me virei – e reconheci que o fato de ter perdido um trabalho, não foi tão mau assim, bem mais uma chance de requisitar minhas capacidades. Na sabedoria popular não é à toa dizer que uma crise é como uma porta que se abre, enquanto outra se fecha – sim, abre-se para algo que ainda não está presente, mas que procede no processo de sair por ela, pois crise tem que ver com distanciamento, separação.

Tanto obstáculos que se interpõem à realização de nossos objetivos, podem gerar uma crise por não sabermos como lidar com eles, como a quebra da rotina do dia a dia. Isso é muito comum em situações de visitas entre familiares ou amigos, quando saímos do que é repetição em casa quanto aos afazeres, aos horários, aos modos peculiares e bem determinados. O afastamento de tais práticas conhecidas pode nos trazer conflitos conosco mesmas, e uma vez já metidas neles, não é fácil usar o momento para alargar nossa percepção e questionar nossos valores.

Apesar de ainda não ter visto o filme ganhador dos últimos Oscars, Nomadland, sei que sua estória apresenta uma situação de crise por perdas intensamente marcantes a priori. Fern – que em alemão significa longe, distante, e não acho que seja um acaso – é o nome da protagonista do filme, que ao perder o marido e trabalho, encontra como saída, para garantir sua subsistência, vender seus pertences, comprar uma van e sair on the road como uma nômade em busca de trabalho. Ela, como principiante, se depara com pessoas que por razão da crise imobiliária americana de 2008 perderam o que tinham e vivem agora de empregos periódicos em diversas partes do país. São pessoas – a maioria é de idosos – experientes e estruturadas para esse tipo de vida e que ajudam a inexperiente Fern em detalhes fundamentais para sua sobrevivência na estrada. A diretora do filme, Chloé Zhao, incluiu pessoas reais no elenco – com exceção de uma – mostrando depoimentos verdadeiros, gestos autênticos e lugares originais.

Viver como nômade é o oposto de uma vida sedentária assentada numa residência fixa. Não é nem infundada, nem gratuita a decisão de partir para esse estilo de vida, sequer garante satisfação diária; também não é uma aventura sem precedentes e sem destino em busca de infinita liberdade. Eles não são nem aqueles turistas de mochilas nas costas ou viajantes de vans que mesmo indo de um lugar a outro sempre precisam de uma estrutura já organizada que satisfaça suas necessidades. Essas estruturas em geral não são benéficas ao meio ambiente, pois tendem a crescer para favorecer mais à indústria turística. Não. Ser nômade é deslocar-se de um lugar a outro tendo em vista a subsistência como base de um assentamento temporário, e aí explorar suas condições e formar um modo de viver. Por princípio o nomadismo age conforme ao meio ambiente e consiste em sustentar os recursos, e não degradá-los como faz o turismo. Assim também era na pré-história, como também na época das grandes caravanas e das longas transladações aviadas por necessidade de alimentos, por irregularidades climáticas, catástrofes naturais e até perseguições. Pessoas ou grupos humanos têm seus motivos, suas crises de vida que lhes fizeram nômades; eles têm sempre o que contar nas suas paradas e oferecer ou receber ajuda. Daí a importância do sentido de comunidade, de união, nem que seja por pouco tempo, mas sempre com a certeza de que se encontrarão em outro lugar.

Os tempos modernos com a industrialização diminuíram as ondas nômades, já que nada é mais sedentário do que trabalhar em fábricas. Hoje empresas de porte espalhadas em todos os cantos, tiram proveito dessa gente, dando-lhes trabalho temporários e nem sempre pagando-lhes à altura. E Fern, a nossa protagonista citada acima, segundo li, também participa dessa via neoliberalista por necessidade de dinheiro e, talvez, por gostar de trabalhar, adquirir experiência, mas não para se acomodar, para isso Fern está muito longe. Ela quer seguir, continuar na estrada e, quem sabe, reencontrar seus companheiros de missão.

Esse filme Nomadland que só vi trailers, deu-me interesse em ler e refletir sobre o nomadismo e sua resistência em continuar nos humanos como uma ação eficiente de desenvolvimento sustentável. A vida sedentária exige mais construções e com elas a necessidade de todos tipos de equipamentos, desde móveis e outras coisas necessárias, mas também coisas supérfluas que não cabem mais dentro de uma comodidade modesta. Li muito mais do que expus aqui – é sempre assim – como também sobre o que é uma crise emocional e como se manifesta, apesar de que minhas experiências com elas já seriam suficientes.

Próxima postagem: 17/6/2021

O CASO DO MENINO HENRY BOREL E OS VALORES BURGUESES ACIMA DE SUA VIDA

O menino Henry Borel sofreu tantas ações violentas contra seu corpinho de apenas quatro anos que não aguentou mais ser socorrido por médicos – chegou morto ao hospital, melhor dizendo: foi levado já morto ao hospital, nos braços de sua mãe, Monique Medeiros da Costa e Silva acompanhada de seu parceiro, um médico e vereador do Rio de Janeiro, Jairo Souza Santos Júnior, conhecido por dr. Jairinho. Não houve dúvidas para a polícia que o menino foi assassinado, restando esclarecer o grau de responsabilidade de cada um dos dois na sua morte.

Falsos depoimentos, mentiras, tentativas de atrapalhar a investigação, tudo isso foi apelado para contradizer a verdade sobre o que realmente eles fizeram com Henry na noite do 7 para o 8 de março deste ano. Segundo li, o dr. Jairinho, usando de seus poderes de político por meio de gente influente, depressa tentou liberar o corpo do menino do hospital na Barra da Tijuca, sem que o cadáver fosse levado ao IML – Instituto de Medicina Legal – para exame e emissão do atestado de óbito de Henry com causa de morte definida. Achava o vereador que o caso iria ficar por isso mesmo? – Grande estupidez sua. Monique pediu falsos testemunhos da babá e da empregada para reafirmar a tese de acidente dos dois na causa da morte do filho e encobrir seu conhecimento dos maus-tratos que recebia o menino do padrasto. Por quê? Para quê? Para que, como um acidente, tudo voltasse ao normal mesmo com Henry morto? Para enfim poder viver a vida de luxo oferecida pelo parceiro sem o incômodo do filho? Ou porque sua escolha de ir viver com o dr. Jairinho foi prioritária, e fazer vista grossa para o terror que havia em casa foi a melhor forma de manter o que tinha alcançado vivendo com um político num condomínio de alto padrão da Barra da Tijuca? O dr. Jairinho é tido como psicopata e como o único agente da violência física causadora da morte de Henry, contudo Monique não fica livre de participação do homicídio, mesmo que ela tenha tomado soníferos sem saber ou por vontade na noite do ocorrido, ela consentiu de certa forma consciente que seu filho fosse vítima de uma barbárie.

Quem é Monique? Quem é essa mulher de Bangu, no Rio de Janeiro, professora, diretora de uma escola, ex-mulher de Leniel Borel, com um filho pequeno, e que em poucos meses faz uma mudança radical em sua vida: separando-se do marido, começando a viver com outro homem, o dr. Jairinho, num bairro de classe média alta e até aumentando seu ordenado por passar a trabalhar no tribunal de contas do município? Ter mais e mais sempre foi seu fraco; sua ganância era clara para seu ex-marido: „Imagino que o que a gente tinha não era bom para ela. A Monique queria muito mais e eu dei carro, dei cartão de crédito. Dei tanta coisa para Monique nessa vida.“ Também seu narcisismo é mostrado nas fotos, nos selfies, „ela sempre aparece na frente, Henry atrás. Eu sempre estava em último plano. Em dez anos de casamento era ela sempre na frente e todo o resto para trás“, disse Leniel Borel. O selfie que ela fez na delegacia no dia do seu primeiro depoimento, exibindo – como a Monalisa – um leve sorriso de satisfação ao ver-se na câmara do celular ojerizou-me, foi a revelação de uma pessoa superficial e centrada não mais que em suas próprias prioridades. Assim como sua ida a um cabeleireiro no dia seguinte ao sepultamento de Henry, sua obsessão por roupas, sua posta em cena me irritaram, nos irritaram a todos nós sabendo que sua concentração narcisista a impedia de defender seu filho, de sentir por ele. É que a falha trágica de Monique foi esse enorme narcisismo carregado de valores burgueses decadentes; e a sua culpa foi ter consentido indiretamente o parceiro cobrar o conforto que lhe dava – pois nada foi de graça e por amor – com agressões físicas no menino, e isto já tinha sido constatado antes de sua morte pela babá e pelo próprio Henry que chorava, não queria viver na casa da mãe e do „tio“, falava que a cabeça lhe doía e das rasteiras que recebia. Havia um clima de violência na casa, mas até ela ser desmascarada e acusada, já foi tarde demais, pois Henry já estava morto.

Henry, segundo o que pude apurar, era um garoto sensível, muito apegado à mãe. Transtornado e nervoso – acho eu – ficou com a mudança do lar, com o novo estilo de vida, a presença de um outro homem na vida de sua mãe, uma nova escola, diversas atividades e as idas e vindas para ficar com o pai. Monique não pôde avaliar isso, como não pôde proteger o menino, ou pelo menos acreditar nele quando contava que o „tio“ o machucava. Do seu laudo de óbito foram constatadas 23 lesões, sendo a laceração do fígado e a hemorragia interna de força incisiva, penetrante. O algoz, como médico, sabia bem onde estava pisando, chutando, dilacerando.

Não posso esquecer o Henry; todos os dias reviso notícias, procuro saber como anda o caso tendo a mãe e seu parceiro acusados de sua morte, mas no fundo há muito mais gente indiretamente responsável, que com suas intervenções precisas e de antemão poderiam ter evitado a tragédia. Aqui incluo o pai, os avós, a empregada temerosa, a irmã do acusado, que o conhece tão bem. Sem embargo, para isso, seria preciso ter coragem, uma coragem ética que abarcasse o valor da vida da criança e fosse além das relações familiares, dos mitos religiosos, da indiferença de todos, porque por trás das aparências todos sabiam que o menino Henry estava sofrendo, e só a babá comunicou isso à mãe e à avó materna, o que ainda não foi suficiente e levado como „mentiras“ de criança, só que criança nessa idade não mente.

Espero que o dr. Jairinho e a Monique assumam o mal que fizeram ao Henry levando-o a perder sua vida tão cedo. Mas não é que eu esteja esperando demais de um psicopata já declarado e de uma mãe extremamente narcisista?

Próximo artigo: 25/5/2021

ATENÇÃO MULHERES, FUJAM DOS HOMENS QUE…


 
    

Lendo sobre porque a agressão, a violência e os homicídios são quase exclusivos dos homens, deparei-me com uma pesquisa de cientistas canadenses da Brock University St. Catharines, a qual diz que há uma relação de largura e comprimento da forma do rosto como um grave índice marcador de comportamentos agressivos, raivosos e violentos. Homens que têm o formato do rosto mais largo que comprido, mostram já nesse aspecto mais potencial para agressividade que outros.

Ora, não vamos sair por aí medindo a cara dos homens, e mesmo que na opção de procurar parceiros por aplicativos apresente-se a chance de observar bem a forma do rosto dos candidatos como eventual prevenção, não é isto o que quero me deter aqui neste texto, pois tais pesquisas são importantes, mas também relativas, e servem sobretudo às investigações policiais de crimes e homicídios. Critérios pessoais devem entrar na escolha do parceiro, e os pressupostos são tão variáveis como as necessidades de querer ter alguém, ficar com alguém ao lado. Minha mãe não conhecia a palavra misógino, este para ela era um homem ruim, malvado, que fazia sua mulher sofrer. Dizia minha mãe que aquele que tinha outras mulheres ou uma amante era um safado ou um cachorro – e todo homem era cachorro, menos seu pai, ou seja, meu avô. Dentro dessa moldura vi quadros horríveis de casamentos malogrados, mulheres sofridas, infelizes e abnegadas, umas coitadas cujos valores próprios estavam na dependência, no amor aos filhos e ao lar e no poder de suportar as dores. Essas mulheres não tinham como se separarem de seus maridos, se isso acontecia era porque os maridos tinham deixado a casa com elas e as crianças. Ouvi muitas vezes que o casamento era coisa muito mais de sorte do que de amor; este era do empenho delas, aquela era a loteria, na qual elas tinham de jogar.

Hoje as coisas têm nome. Mesmo estando mais divulgado entre as mulheres o que é misoginia, que o patriarcalismo é uma estrutura de poder que só favorece aos homens e que o sexismo é uma forma de discriminar mulheres só porque estas são mulheres – entram então estes fatores como alertas de perigo em seus pretendidos relacionamentos? Acredito que ainda é difícil para uma mulher jovem começar um relacionamento pretendendo que ele seja duradouro. Assim como é difícil para todas como terminá-lo. A dificuldade está em que precisamente hoje vivemos em plena divulgação do feminismo, dos esclarecimentos, do MeToo e dos protestos ao patriarcalismo, ao machismo, ao racismo e, sobretudo, ao feminicídio – o que faz com que homens se sintam mais inseguros. Será que tudo isso é considerado e prioritário na escolha do parceiro? Ou são eles esvaídos pela mera paixão do início ou das necessidades intrínsecas? Acho que quanto mais o feminismo avança em defesa – entre outras coisas – da igualdade de direitos, o trabalho de conscientização de uma mulher tem que ver com seu meio, suas experiências e a sua disposição de ser um agente de demandas para ela mesma, daí que tudo concorre quando uma mulher quer se relacionar com um homem.

Vi com interesse influenciadoras jovens em canais do Youtube falando do que se deve ou não fazer para se ter um relacionamento feliz; ou passos para conhecer o amor de sua vida; ou mesmo os tipos de homens que afastam as mulheres. Estes temas antes eram mais escritos e cobertos de moral; hoje elas falam deles com muito humor e quebrando sua seriedade para torná-los alcançáveis. Letícia Lecato é uma dessas jovens bravas que no seu canal do Youtube fala com temperamento sobre diu, mamilos, clítoris, pompoarismo e até de temas existenciais como „E se eu não me casar?“ Em seus últimos vídeos pareceu-me ela mais amadurecida, mais concentrada e já não rindo tanto, até tocando de leve, mas explícita em questão de gênero: Um dos sinais do homem maduro é que „ele não rotula aquilo que é coisa de homem e aquilo que é coisa de mulher“. Quando ouvi isso, vibrei, pensei: agora ela vai disparar e chegar no nó da coisa. Não. Letícia Cecato disse apenas que nem precisava falar sobre aquilo. É que o problema é tão óbvio e repetido que se pensa não valer a pena discuti-lo. Errado. Ele agora tem um nome – problema de gênero – e espero que ele seja tão abordado quanto o racismo, o trabalho forçado de pessoas, os crimes contra a humanidade e o meio ambiente.

Como Letícia Cecato fala de sinais, homens deixam sinais que por mais sutis que sejam ao início, serão cada vez mais desvendados ao passo que trabalhemos contra relacionamentos abusivos, onde agressões e violência contra as mulheres são o topo dos problemas. Esta é a pauta. Hoje não só sabemos mais que antes da existência deles, como temos construído um manancial que nos ilustra e nos fundamenta. Ocorrências diárias contra mulheres levam a protestos de ruas e nas redes sociais, #hashtags, estatísticas alarmantes – estamos vivendo o tempo de dizer BASTA: – Homens, basta de tratar as mulheres como se elas fossem estúpidas e seus pertences; basta de impedir ou distorcer a expressão das mulheres, como se elas não tivessem o que dizer; basta de ter as mulheres sob seus controles, tolhendo-lhes a liberdade de serem o que são e o que quiserem. E mulheres, basta de acreditarem em amores vazios, achando que o amor tudo vence; basta de se iludirem por promessas não cumpridas e basta de achar de que só com um homem poderão ser realizadas.

É que os relacionamentos têm de sair da esfera única emocional e egoísta de querer ser amados incondicionalmente e de que a vida a dois existe com o fim de trazer felicidade. O relacionamento existe para que os dois se conheçam, se desenvolvam, cresçam como seres juntos e separados ao mesmo tempo. Isto é muito maior do que os obsoletos happy end „ dos filmes e a ilusão do “assim serão felizes para sempre“.

Como é bom e fácil teorizar! Mas se não tomamos isso como uma receita, podemos pelo menos entender como uma proposta, um antecedente já em curso e impossível de voltar atrás. O feminismo com suas interseccionalidades trabalham pela igualdade dos seres humanos e são tão fortes, corajosos e humanitários, que nem é preciso viver teorizando – o feminismo, no qual eu acredito, existe para que vivamos melhor uns com os outros.

Próximo post: 30/4/2021

„OLHA GENTE, SONHAR É DE GRAÇA“

   

Era uma vez uma influenciadora digital chamada Ygona Moura que contava com mais de 170 mil seguidores nas redes sociais, entre positivos, assim como o contrário – também de perseguidores nefastos. Não sei nada sobre seu nascimento, seu verdadeiro nome, sua infância e escolaridade, mas sei que cerca dos vinte anos deu-se conta de que como travesti se sentia melhor. Sua morte repentina e prematura me comoveu, e deu-me conta de quanto teria gostado de entrevistá-la numa conversa aberta e franca.

É verdade que todos nós temos nossos talentos, mas só poucos são capazes de usá-los para influir milhares de pessoas como Ygona fez na internet, e mesmo tornando-se a rainha dos memes, a mamãe Ygona, a travesti de longas perucas coloridas, com lentes de contato esverdeadas e maquiagem pesada, não era ela nenhuma modelo da Heide Klum, pelo contrário seus 100 quilos de peso foram comemorados num ambiente cintilante de princesa, com balões dourados e bolo de calórica cobertura cor de rosa, o que reitera o que já tinha afirmado: „Não nasci para ser adulto“.

Ah, esses corpos! Corpos grotescos, balofos, barrigas penduradas nos coses das saias, traseiros enormes que se mexem eroticamente rítmicos para frente e para trás. Corpos que emanam gordofobia em muitos, mas também corpos estuprados, ou que se vendem por algo e que não querem só dar prazer, mas também tê-lo. Corpos que atravessam as emergências do dia a dia, saturados de vivências e, que, feitos pelo que dizem deles, significam pelas suas práticas. Ygona Moura usou seu corpo como demonstração de sua identidade e para confirmar suas preferências sexuais, travestiu-se daquilo que não lhe foi assinado – o sexo feminino – o exagero de sua aparência correspondeu a seus desejos de cobrar o prazer, mas não só isso, descobriu que podia aparecer como ela mesma, postando fotos, gravando memes e vídeos .

Numa entrevista de Youtube com a famosa cantora e conhecida na web, Inês Brasil, falou de seu início na mídia; ela ficou conhecida por ataques de gordofobia – „é inveja“, assinalou Inês Brasil – mas Ygona seguiu sem ligar para as críticas, sempre „batia de frente“, até que verificou que também havia aceitação: sua resistência e insistência em prosseguir lhe garantiu mais e mais seguidores – Ygona estava fascinada. Quando o número de impressões superou o de um milhão, não entendeu o que aquilo significava – seria o total de seguidores? Não. Ela deixou-se esclarecer, o que contava eram as mensagens positivas que ela recebia: „Muita gente aprendeu a se amar mais, a se aceitar mais“, quando começou a acompanhá-la na internet. Isto foi o positivo de suas incursões como influenciadora; seus deboches frente ao perigo de contaminação com o vírus da covid-19 não devem ser apagados em nome de deixar intacta sua memória, nem justificá-los com a sua morte como dívida pagada. Ygona Moura também vai ser sempre lembrada pela sua libertinagem, sem que seja, porém esquecido o que a conduziu a isso. Como sobreviver em meio às restrições impostas pelas medidas sanitárias como prevenção de infecção pelo coronavírus? Os que dependem da rua e de clientela que o digam. Esses corpos, cuja existência é minimizada, cobram vida; e se aglomerações não são recomendadas, ao mesmo tempo que a proibição delas nunca foi meta do governo federal de Jair Bolsonaro, pelo contrário; esses corpos estão desprotegidos e descaminhados.

Não acho que essas festas referidas por Ygona sejam só pelo prazer gratuito de diversão. Não. Acho que nelas bases de subsistências são expostas aos negócios, não importando o risco. No seu vídeo após ter pernoitado numa dessas festas, disse Ygona que aglomerou mesmo, e movendo os dedos para simbolizar dinheiro, acrescentou: „e ganhei bem pra isso“. Não sei o que ela empreendeu na festa para ter sido paga, nem ninguém perguntou por isso, mas já era sabido de suas dificuldades financeiras e com seu irmão que, segundo um vídeo desesperado, conta ela, tentou matá-la, ficando Ygona sem ter para onde ir. Pessoas como Ygona, desempregadas, evitadas no mercado de trabalho, têm muito pouca chance de manter-se por si mesmas, assim todo tipo de favor prestado pode ser fonte de um dinheirinho. O corpo não só é fonte de capital, mas também centro de produção sexual, enquanto é dado a ser visto, desejado, invejado, ou até repelido. Espero que seus seguidores fiéis, os que se entretiveram-se e aprenderam com ela, tenham feito alguma merecida doação pelos seus vídeos – um arquivo de inúmeras horas de exibição, onde ela expõe seu corpo, sua vida, seus memes e suas emoções nas plataformas das redes sociais. E observando alguns deles, dei-me conta da precariedade do ambiente onde vivia, das paredes frágeis e da composição básica dos elementos presentes. Ygona não encobriu sua pobreza.

A permissão da própria privacidade ao público como produto de consumo sempre me chocou, mas para Ygona isso era como rotina de trabalho, pois quem elege uma ou mais redes sociais como plataforma para autopromover-se, tem que ter tempo para a labor, estar disponível e ativo para entrar em ação. Vi uma aparição de Ygona no banheiro – parecia mais que o que tinha a dizer era mais importante que o lugar onde estava – tomando banho, a água do chuveiro escorrendo atrás de seus ombros e o peito quase todo à mostra. Pedi a Deus que a câmara do celular não mostrasse mais que isso – Ygona apenas escovou os dentes a seguir. Ela se dava a esse luxo de jogar com o não convencional e encontrar seu lugar na mídia, adorava aparecer e afirmar-se como travesti – pelo menos não percebi em seus vídeos o descontento e o desejo de mudar materialmente de sexo – e esse passo era sua vez de dizer, sem vergonha, que queria um macho, „ou um amigo“.

Não constatei um olhar maldoso, nem sarcástico em Ygona – que também devem ter ocorrido – mas bem a necessidade de afirmar-se, – como diva? – de exibir uma beleza, sua beleza travesti, de poder superar-se, mas também sensível e grato a todos que a seguiam e ajudaram-na com vaquinhas para compra de um celular ou arranjar uma moradia. Isso mostra o quanto Ygona era carente, e a chance de participar na mídia, fazer-se conhecida, ganhar um nome era muito importante para ela. Por outro lado que mais poderia esperar, como negra, obesa, travesti, num país de grandes desigualdades sociais e racista como o Brasil? Ela também conheceu o lado cruel das redes sociais, sofreu com as fake news sobre sua vida, mas sobretudo Ygona continuava, tinha paciência, sonhava. Eu imagino que ela sonhava em alcançar o que a tornasse uma influenciadora de milhões, uma travesti adorada e tão independente economicamente que pudesse comprar um apartamento de luxo. Na sua viagem ao Rio de Janeiro em dezembro de 2020, Ygona olhou para edifícios de apartamentos numa zona nobre da Barra da Tijuca, e perguntou-se: „Será que um dia vou ter um desse?“ „Podia ser aquele, ou aquele outro, ou aquele outro“. „Olha gente, sonhar é de graça“. Ygona Moura faleceu no dia 27 de janeiro de 2021 por consequência da covid 19. Ela tinha 22 anos.