Uma coisa boa

 

Desde o início dos debates públicos do #MeToo as mulheres têm avançado na luta contra o desrespeito, a discriminação e os abusos sexuais, demonstrando coragem, poder de decisão e tornando o movimento mais amplo, sobretudo quando homens também vítimas de investidas sexuais podem se juntar a elas e denunciar ataques sofridos não só de homens, mas também de mulheres. É quando o hashtag pode ir mais além de só querer ver as mulheres como vítimas – embora o número delas como vítimas seja extremamente desproporcional ao dos homens – e passar a ampliar seu teor democrático: todos têm voz e poder de expressão porque o mais importante é o que define o próprio movimento, ou seja, o hashtag MeToo tem que ver com, acima de tudo, denunciar os abusos de poder em forma sexista e discriminatória, como também fazer frente a aqueles que defendem a impunidade e rejeitam a credibilidade das vítimas num sistema que faz prevalecer o silêncio à denúncia e assegurar o comportamento abusivo como normal. Mas isto é tudo? Pelo menos parecia que era tudo até que o presidente americano Donald Trump começou a querer tirar vantagens do movimento para o seu próprio benefício. Isto passou numa de suas viagens pela sua recandidatura à presidência no Estado do Mississipi. Ele desacreditou da professora universitária Christina Blasey Ford por ter ela denunciado o juiz Brett Kavanaugh de uma tentativa de violação no início dos anos 80, quando tinha então 15 anos. Trump, que se pôs ao lado do juiz Kavanaugh – claro – usou de zombaria para qualificar a professora de mentirosa, enquanto procurava grotescamente imitá-la por um lapso de memória, uma hesitação – o que é de se esperar ao se expor num depoimento como esse:

Ele: – “Eu tomei uma cerveja, certo?
– „Como a senhora chegou em casa?“ „Não sei.“
– „Onde passou isso?“ „Não sei.“
– „ Há quanto tempo atrás passou isso?“ “Não sei mais.“
– „Não sei, não sei, não sei.“
Isto mostra até que ponto chega Trump para que o público ria junto com ele, aplauda-o, confirme-o, mesmo fomentando a desigualdade, o ódio, a indiferença. É também uma das mostras de quão polarizado se encontram os Estados Unidos; se por um lado o país é sede de iniciativas novas como o próprio MeToo – por outro lado é exatamente o contrário: seguidores do presidente encontram confortavelmente na sua gestão terreno propício para disseminar o desrespeito, o descaso e o menosprezo às mulheres, aos negros, aos estrangeiros; não lhes interessam nem a dignidade nem a coragem de Christina Blasey Ford ao deixar público um fato de sua vida, que a marcou para sempre, independente de que ela tenha tido culpa nele ou não, porque o papel da culpa foi o que menos valeu no show do depoimento, mas sim o que se pôde fazer para eliminar o inimigo – e ela era um inimigo em potencial – uma inimiga do conservadorismo.

A já mastigada pergunta do „por que só agora, depois de tantos anos ela faz a denúncia?“ falta raciocínio, não leva em conta o passado – ou por medo de encará-lo, ou por indiferença pelo que passou – estimula a repressão e faz da história um esquecimento, o qual este serve como tática para manipular o presente. Com tudo isto, as mulheres que sofreram, não importando a forma, se verbal ou física, investidas sexistas e discriminatórias não esquecem. Elas não esquecem porque sentem o que passou como uma ferida; para as que sofreram violentos ataques físicos – apalpações agressivas, e sobretudo violação – essa ferida sangra para sempre; traumatizadas essas mulheres não vivem com relaxo o seu dia-a-dia, pois as lembranças voltam e voltam, se não bem na memória, bem mais por sensações físicas de pânico, tremores e a terrível paralisação que impede reagir – momentos de alto grau de violência, como os de ser estuprada, por exemplo, podem provocar na vítima um mecanismo que faz escapar do presente como uma tática frente ao horror; futuramente esses momentos encontrarão, ao virem à memória, um certo filtro como algo nublado pela necessidade que a vítima teve de recorrer a esse mecanismo. E para nós todas que sabemos o que é ser verbalmente discriminadas pelo sexo ainda nos falta a medida certa de como reagir a esses ataques, a qual vem de uma consciente aprendizagem de como autodeterminar-se. A sociolinguista americana Deborah Tannen, conhecida em português pelo seu bestseller Você Simplesmente Não Me Entende – O Difícil Diálogo Entre Homens E Mulheres estabeleceu dois eixos na comunicação: vertical versus horizontal. O vertical tem que ver primeiro com o uso de poder – hierarquia, funcionalidade – já o horizontal, ao contrário, denota primeiro o conteúdo, a solidariedade, transmitindo a sensação de que o outro faz parte do diálogo – ele não é um estranho. Esperar uma mudança daqueles que pensam verticalmente usando o que se chama High Talk – conteúdos intelectuais, frases de sentido moral, etc. – como reação a uma ofensa ou insulto, não vai mudar nada, porque está visto que a vítima foi pega e dentro das relações de poder ela se encontra bem abaixo. Que fazer? Devolver na mesma moeda a ofensa? Bem melhor nunca perder os nervos, e para isso é preciso se conscientizar treinando formas de superar o ataque sem perder a sensação de sentir-se confortável e segura, ou seja, falar devagar e firme encarar o tal, o autor do ataque, olhando-o nos olhos e calmamente dar-lhe uma resposta. Nada de solidariedade, de confiança, pois a comunicação não se encontra no eixo horizontal, e o fato de que as situações são diferentes, o melhor é estar preparada para enfrentá-las. Pergunto-me se isso não parece mais um estado de guerra. É sim, uma guerra sem armas de fogo, mas com o uso da coragem, da perspicácia e da calma podemos fazer frente aos inimigos. Mulheres perdem inúmeras oportunidades de reagir à altura investidas sexistas – fazem vista grossa, se envergonham, não podem acreditar que tal absurdo possa acontecer com elas, ou se paralisam – machos sabem como investir em mulheres a durabilidade de suas posições de poder; eles não agem por brincadeira – como deixam transparecer – eles as observam, as testam para saber até onde podem chegar. Eu que não trabalho com um grupo de pessoas, posso porém imaginar a insegurança, a falta de conforto e o mal-estar daqueles e daquelas que são levados a ser alvos de brincadeiras maliciosas e até ao ridículo ou ao escárnio. Até onde ou até quando vai isso? Até quando as sociedades tiverem superado „as coisas ruins“ através de esclarecimentos, de educação para o sentido de respeito e igualdade como também de lutas? Também me pergunto assustada se por um modelo reduzido e simplista não seriam essas lutas assim como lutas entre o bem e o mal? Não creio. A História toma dialeticamente seus rumos; há sempre um desenvolvimento histórico nas lutas de classes, o qual não sabemos para onde vai, mas uma coisa é certa: se não lutamos estamos perdidos. E se pensarmos se o fim „das coisas ruins“ seria correspondente ao fim do patriarcalismo, chegaríamos a pertinente pergunta dentro do próprio feminismo: teve o patriarcalismo um início numa época tal? Então se houve um início, também terá um fim? Como no ciclo vital? (1)

É certo que o MeToo desencadeou outros hashtags, uma forma de organizar mulheres através de uma chamada capaz de ser comum a todas elas; o #EleNão no Brasil, por exemplo, o qual considero ímpar no desenvolvimento de uma consciência política das mulheres brasileiras. A necessidade de ter sido criado foi oportuna dentro do contexto político do momento, apesar de ter sido tachado como um movimento de elite branca, da esquerda, claro, ou como uma ação petista contra o petismo (*) – para mim as duas alternativas são falsas. „O EleNão vai muito além do PT“ (2), vejo-o como resultado de uma polarização, pois o momento de decidir sim ou não ao fascismo falou mais alto, daí a chamada das mulheres unidas contra um candidato à presidência que personifica a coisa ruim – a misoginia, a discriminação pelo sexo, pela cor e origem, o caráter ditatorial e o emprego da violência – fez surgir o EleNão, assim como a necessidade das mulheres de usarem a expressão e de tornarem-se estratégicas e consequentes, e principalmente serem ativas expondo-se e saindo às ruas. O movimento teve muita repercussão positiva no estrangeiro – foi melhor entendido, digo eu – e mesmo que o objetivo imediato não vingue, não é isso nenhum fracasso. O passo em direção à autodeterminação já foi dado e só o futuro mostrará isso com certeza, o que será uma coisa boa – assim espero – EleNão.
(1): Esta pergunta me veio por ter lido Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade de Judith Butler, no segundo capítulo.
(2): Parte do título de uma postagem de Raquel Rolnik em Blog da Raquel Rolnik,

(*): lêa-se antipetismo

 

 

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