O FIM DE EDDY – QUE NÃO FOI UMA TRAGÉDIA



„A dor da gente não sai no jornal“, (1) mas pode sair num livro ou no teatro quando o narrador lírico não se exclui de outros e propõe-se a revelar de si mesmo como liberação e testemunho. Só um olhar objetivo é capaz de reconstruir o que o corpo sentiu de humilhação e medo. E essa dor sofrida pelo outro nos toca se pesarosamente a imaginamos ou se assistimos a representantes dela a reviverem em seus corpos num intento de diluir o real no contado.

O Eddy-Projekt, um trabalho de teatro baseado nos livros autobiográficos O Fim De Eddy de 2014 e Quem Matou Meu Pai de 2018, ambos de Édouard Louis e encenado por atores jovens não profissionais do WABE Berlim, que é um espaço municipal no leste da cidade para realização de eventos culturais. A direção é de Alexander Weise e a música de David Schwarz.

Édouard Bellegueule, aliás Édouard Louis nasceu em 1992 e vivia com sua família no norte da França em condições de pobreza. Sua mãe era dona de casa, seu pai, como tantos outros da localidade, trabalhava numa fábrica e com seu mísero salário mantinha a família. Eddy, como era chamado desde pequeno, sofreu o que é a homofobia. Na escola foi perseguido sobretudo por dois meninos mais velhos que o escarneceram, o golpearam e cuspiram-no, só porque Eddy tinha trejeitos femininos, era frágil, medroso e falava com voz afeminada. Não o podiam aceitar, ele saia dos moldes de como um homem de verdade tinha de ser naquele lugar, e não um maricas, um veado, uma bicha. Estas palavras abjetas referidas a ele o acompanharam pela infância, era o que ele ouvia na escola e no vilarejo. Para sair desse tormento Eddy passou até pelo contrário de sua própria natureza, esforçando-se para corresponder o que esperavam dele. Não foi possível, e teve que seguir sofrendo.

Quatro dos nove atores em círculo recitam devagar o inicio do livro – resumo da via crucis de Eddy, – ele tinha nove anos e era novo na escola. Uma rajada de guitarra como numa abertura de um concerto de rock faz mover a ação, mais cinco atores entram eletrizados, e em frêmito expressam com a voz e o movimento do corpo o ambiente de seu sofrimento. O palco é o espaço do horror e Eddy entra em cena. Vemos e ouvimos sobressaltados uma mistura de vozes, a respiração ofegante de um asmático, uma tentativa de fuga. Era Eddy e seus torturadores, meninos já envoltos em violência – era a crueldade, a inclemência nas mãos de crianças que já começavam no pátio, nas escadas da escola a exercerem poder sobre Eddy. Os jovens atores dão de tudo para reviver nos seus corpos, o que Eddy viveu no seu único corpo, um corpo dolorido, reprimido, ainda sem dono, vivendo dele mesmo. Este – sempre o corpo – tem que encontrar nos atores sua expressão e ressonância, seu suporte e aprovação, e assim as ações deste corpo são variadas e repartidas entre eles, desenhadas em círculos, em passos automatizados, em costas curvadas, ou como um barril que rola e rola até topar-se com o próprio limite. Ou mesmo a inércia do corpo é encenada em corpos.

O grupo de atores forma um coletivo, um coro representando dois lados – todos são o fragmentado e desencontrado Eddy, mas são também seus algozes. As vozes discursivas são multíplices – os pais de Eddy, seus irmãos, seus colegas, seus carrascos e a comunidade – um coletivo de seres que vivem ao seu redor e que falam pelas bocas do coro. Todas as vozes são ainda seus velhos eus traduzidos por esse coro em tons de escárnio por falta até de compaixão: porque esta poderia servir, se não para salvar, pelo menos para aliviar. Mas não, o coro modula suas diversas vozes à mercê do que vem e surpreende o público, fala sem cansar, enfeia o discurso, faz revelações íntimas, e tudo isso em momentos, fatos alternados de ação e reflexão.

Um blogueiro brasileiro disse que o livro O Fim de Eddy está „repleto de gatilhos“ e ele só o recomenda a pessoas fortes psicologicamente. – Os brasileiros e suas obsessões psicológicas – Ele quis dizer que antes de ler o livro é preciso saber do que ele se trata. Os gatilhos são conteúdos sensíveis revelados em cenas de violência, abusos, levando o leitor à aflição. Por outro lado essa aflição, esse desconforto também não seriam uma expressão de indiferença? E esta é o menos que Édouard Louis espera de sua obra, ao contrário, para ele é preciso falar de racismo, homofobia, dominância masculina, abuso de mulheres e crianças e exploração de quem quer que seja, onde e como são produzidos. Também é preciso saber quem é o opressor, ter uma ligação com ele, para poder se livrar dele. Seu livro, menos do que uma confissão, é um depoimento de liberação, sem culpar ninguém, sem vangloriar-se de sua pessoa enfim libertada. Contudo o que levou Eddy à redenção? A vingança? Não. A coragem? Sim, mas não só ela. Entendo mais sua independência como sendo um aparato de disposições, estratégias, oportunidades, sejam quais foram, ditadas pela consciência de que o corpo não podia mais aguentar, pois aquela condição de vida e a dor por humilhações e golpes não podiam ser normalizadas nele como foram interiorizadas e estruturadas na vida de sua mãe, de seu pai, irmã, juntamente com a ira, porque „talvez a ira seja um critério de reconhecimento da verdade“, disse Louis.

A peça é longa, o público continua concentrado, mas também tem que fruir. Quando? Todos sabem que o desfecho é favorável ao autor com a sua saída da casa dos pais, da escola e do vilarejo. Os atores expressam mais ironia e confiança no corpo; a música traz mais estabilidade nos efeitos; o momento não é de autocompaixão, mas sim de liberação. Uma porta é aberta, a saída dos atores é simbólica: o Eddy menino se libera primeiro, enquanto o outro, já em processo de amadurecimento, sai depois. Tudo isso é mostrado na distribuição dos atores: primeiros os mais jovens e depois os adultos.

O que vem a seguir é a reflexão a posteriori, o ajuste de contas consciente com o pai, mas sem vingança e ódio. É a voz única e livre do autor de Quem Matou Meu Pai – Édouard Louis – apresentada em monólogo, mas desta vez por um ator profissional.

(1) da música Notícia de Jornal de Haroldo Barbosa e Luiz Reis. Foi gravada ao vivo por Chico Buarque e Maria Bethânia em1975.

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