Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Clarice Lispector
Que coisa é essa que se interpõe entre os fatos e a justiça? Que coisa é essa que põe a justiça em questão?
Os tiros disparados matando José Miranda Rosa, conhecido por Mineirinho, um bandido e criminoso procurado pela polícia, encheram Clarice Lispector de dor e revolta e levaram-na a viver uma experiência humana profunda, a qual ela expressa de maneira densa e magistral no conto „Mineirinho“ e ao mesmo tempo surpreendente pela sua forma, parecendo mais um plaidoyer – acho eu – do que um conto ou uma crônica, embora seus argumentos não o teriam nem salvo da prisão nem da morte. Mineirinho foi morto em 1962 no Rio de Janeiro por uma série de tiros; um total de treze balas perfuraram seu corpo indefeso. Clarice Lispector disse numa entrevista em 1977 para a TV Cultura, sua última entrevista, que só uma bala teria bastado para matá-lo, os treze tiros foram “vontade de matar” – foram perversão bárbara digo eu: uma desnecessária execução que fez de Mineirinho um bandido a menos, como um resultado de glória para os tais atiradores e para aqueles que acreditaram neles como defensores de sua segurança. Ou como se diz hoje “bandido bom é bandido preso”, ou em últimas instâncias pode-se corrigir a sentença para: “bandido bom é bandido morto”, quando nisto uma justiça chega a seu ápice ao não dar ao criminoso exatamente o que ele tirou de outro ou outros: o direito de viver. Mas que justiça é essa que devolve na mesma moeda? Seja qual for a sua atuação, na área do judicial ou não, é motivo para Clarice Lispector indignada dirigir-se a ela, repudiá-la pelo alto preço que cobra por um bem-estar e segurança de se poder estar em casa e dormir em paz – nosso conforto é pago por outros que pagam com a vida – e Mineirinho foi fuzilado enquanto ela dormia – e enquanto dormimos outros vão continuar pagando com a vida em nome de uma justiça que diz nos amparar enquanto outros ficam desamparados. Para Clarice somos todos uns „sonsos“; pois deixamos escapar, por essa sonsice, a nossa responsabilidade frente ao outro, e isto é o que sustenta o nosso comodismo diário.
Apesar de o sentido de justiça ser primordial e estar presente no texto de várias formas, não foi, porém, o que mais me tocou no seu texto; Clarice era formada em leis e sabia muito bem o que o termo „justiça“ podia significar em meio a tantas apelações; ela também estava longe de querer justificar gratuitamente os crimes de Mineirinho; mas bem uma outra coisa, „uma coisa“ que a faz se acercar do caso através de sua voz interior, e não por uma ostentação teórica; bem melhor deixar vir à tona aquilo ou aquela „coisa“ que a justiça não cumpre, ainda que seja ela o princípio dos direitos. Mas como expressar essa coisa, a coisa que faz doer a morte de um facínora?
Clarice assiste ao drama de sua cozinheira por não saber exprimir seus sentimentos de pena, por também estar dividida entre a sua compaixão e os fatos reais: quem não sabe que Mineirinho era criminoso?, mas por outro lado: … tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu. A escritora procura em si mesma – sem se individualizar, mas como um dos representantes do nós – que coisa é essa que rebentada não a permite sentir-se aliviada pelo fim de mais um bandido? Se Mineirinho tivesse sido morto com apenas um ou dois tiros, estes não teriam sido suficientes para que nela a coisa se rebentasse: Mas há alguma coisa, que me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, … – entretanto esse desumano excesso de tiros a tira do comodismo – como, meu Deus, precisamos de tragédias, catástrofes para acordar para a realidade! – e levam-na à continuação a despertar-lhe para algo, ressoam em sua memória com insistência, como se eles fossem as treze estações de uma via crúcis, a sua e a de Mineirinho – a via crúcis de Cristo tem uma estação a mais – e ela passa dolorosamente a ser o outro, pois só nessa transformação é possível a compaixão.
“Não matarás”, um dos dez mandamentos de Deus entregues a Moisés e é o que serve para assegurar nossa existência como viventes, porque só Deus tem o direito de tirar nossa vida; aqui rege a lei do olho por olho até que muito mais tarde o Messias resumiu as duas tábuas dos mandamentos em dois grandes ensinamentos, que não foram dele próprio porque já estavam presentes no antigo testamento: um tem que ver com o amor a Deus, de maneira exclusiva e absoluta, e o outro com o amor ao próximo. O revolucionário deste segundo ensinamento é que não é amar o próximo como ele é, mas sim amá-lo como se ama a si mesmo, pois não há diferenças entre amar o outro e amar-se. Vejo um ponto de partida aí no humilde reconhecimento de si mesmo que gera um amor irrestrito e sem barreiras; desta forma posso amar o outro, e entre mim e ele o amor é o mesmo, porque – sob o poder do amor – eu sou o outro e ele é eu, ou seja, amo o outro porque reconheço nele o que sou. Isto longe de nos relegar à passividade, nos levaria a ser ativos – sujeito e discurso – um movimento para a frente, para a união. Este amor incondicional ao próximo nos é exigido pelo cristianismo, mas é-nos, por outro lado, possível? No texto vejo-o referido como um dos lados da tal „coisa“ já mencionada. Há uma coisa, existe uma coisa pura em nós que nos une, que nos faz humanos, mas por ser tão intensa também é capaz de assumir o contrário do que é; essa coisa que ao mesmo tempo que minúscula como um grão de areia fina, também pode ser tão forte e destrutiva como a irradiação do radium: … essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado. Em Mineirinho essa „coisa“ – que por um lado – o fez gostar „feito doido“ de uma mulher e ser devoto de São Jorge também é a mesma coisa que – por outro lado – o desorientou e caotizou sua vida. Pergunto-me que área do conhecimento se prestaria a definir essa coisa. Clarice Lispector não encontra resposta nem na justiça baseada na idéia universal do direito natural, a qual nos dá o que é fundamental para existir: a vida – como se diz: „o sol é para todos“ e não só para alguns, e que é no fundo o princípio de todas as revoluções – esta aqui não chegou a alcançar Mineirinho permitindo-lhe que o sol também brilhasse para ele – nem na justiça dos homens como procedimento arbitrário do que é justo e correto: esta a envergonha porque dá-se conta de sua fachada: sua casa segura, que protege seu sono tranquilo, não é tão segura assim se ela começa a ter acesso à coisa, a aquilo que lhe tira a máscara da sonsice de toda uma vida e cobra-lhe amor ao outro enquanto indignada. Usando de lucidez, Clarice recorre ao divino sem pieguices, não importando se de forma irônica ou não, mas confiando que daí se possa tirar a bondade e a esperança; assim repete a palavra „Deus“ por quatro vezes no texto, como também se vale de passagens da Bíblia, não para rogar piedade por Mineirinho, pedindo a inocência e o perdão para ele – o que seria por demais abstrato, sabia ela – bem mais para pô-lo no lugar dos homens, de todos os homens, que também somos nós, porque nós todos somos perigosos se nos faltou a mão de um pai sobre nossa cabeça a nos amparar. Estes são momentos lindos do texto, vivos e fortes, nos quais a escritora expressa suas convicções sem deixar de se referir à tal coisa – ela quer essa coisa que move montanhas ou „a coisa“ que a faz dar água a quem tem sede, não porque ela tenha água, mas porque, também ela sabe o que é sede.
Quando eu tinha entre catorze e quinze anos vi uma cena que me repugnou; foi numa das paradas de um transporte coletivo rumo ao centro da cidade. Numa esquina estava um rapaz com o seu carrinho de sorvetes, e ao redor dele um grupo de rapazes, que pela sua aparência pertenciam a uma classe social bem mais superior. Sem levar em consideração que o sorveteiro trabalhava pela sua subsistência – e talvez até de uma família – e sem nenhum respeito humano a ele, os rapazes tentavam provocar a ira do jovem para humilhá-lo na sua condição de pobre e indefeso. Da janela do ônibus fui atraída pelo seu sofrimento existencial, sozinho e desamparado sem poder se valer do que ele tinha de mais valoroso: sua dignidade humana, sua nobreza de ser homem trabalhador mesmo não possuindo um título honrado; vi no seu rosto a dor de quem já era um perdedor oprimido, recuando como única defesa, pois no momento uma valentia isolada não significava nada. O ônibus seguiu adiante sem que eu pudesse ter visto como terminou esse episódio vergonhoso; sua humilhação deve ter se transformado em ódio, e a vergonha por não ter podido ele mesmo se socorrer, deve tê-lo impedido por muito tempo de usar de sua racionalidade. Não ouvi no ônibus nenhum comentário – é muito provável que outras pessoas também tenham visto o que acontecia na esquina, apesar de tudo isso ter passado depressa, só o tempo de uma parada sem demora, mas o suficiente para paralisar-me pelo terror. Eu era muito jovem, uma adolescente desprevenida para essa realidade e, como a cozinheira de Clarice, não sabia me expressar e acabei reagindo como todos: deixando passar para evitar a dor que dela faria do sorveteiro um de nós, porque no fundo seria essa dor o que poderia nos unir. Esta lembrança agora emergida é a dita prova de como fomos todos sonsos – eu e os outros dentro do ônibus – o medo e a indiferença nos impediram de usar uma justiça – fosse ela qual fosse – em favor de um homem acuado e ultrajado por outros; preferimos não ver para continuarmos comodamente nossa viagem – a cegueira foi o preço que pagamos, evitando que o ônibus estremecesse se a tal coisa rompesse pelo menos em nome do que se chama coragem civil.
Como deixar viver essa coisa? Clarice acha que só a doidice – perder-se – seria um meio de chegar a ela: uma justiça mais doida, um amor doido, uma compreensão doida do que é perigoso compreender, e só sendo doido pode-se sentir um amor profundo – aquele que explodiria seus raios em „ isso ou aquilo“, ou seja, na esperança, na confiança, no amor, ou naquilo que seria o contrário levando à desorientação e a destruição. Pergunto-me por que ela não usa palavras como louco, louca, loucura para referir-se ao acesso à „coisa“ ou ao estado da „coisa“ – acho que seriam estas bem mais formais; também não recorre a explicações científicas porque, para ela, não há explicação científica para a tal coisa. Clarice Lispector vale-se de Clarice mesma para expressar seu olhar profundo e sua compreensão aguda dirigida às coisas e a nós; com isso ela nos mostra nosso próprio desespero humano, – nós pobres humanos – nos põe na fronteira de nossa capacidade de compreensão, nos deixa desamparados frente a termos tão comuns, mas também abstratos como „erro“ e „salvação“, mas que em suas frases assumem estes um caráter ambíguo, porque um pode ocupar o lugar do outro: o erro é o seu – o nosso – modo de viver, mas ao mesmo tempo a sua – a nossa – salvação; o bandido Mineirinho é resultado do seu erro, mas também é o que vale para a sua salvação; seu erro é assustar-se diante da vida em forma de carne, sangue, lama, assim como sua salvação é calar esse erro, não compreendê-lo, afugentá-lo. A necessidade de abstrair coisas ocultas dos fatos – que só um coração compassivo pode ver – vem de sua inquietação, de suas longas elucubrações, tentando criar com esforço, não o que é óbvio, mas numa profunda solidão, a unidade entre o ser e o pensar. Aonde quis chegar? Ao místico? De sua solidão – acho eu – veio a necessidade e o intento de viver o outro, pois todos nós somos da mesma matéria e da mesma lama, mas por outro lado por que somos um ao outro tão aversos? O que nos salvaria?
Como responder perguntas tão inquietantes? Como dividi-las com alguém, senão no ato de escrever? Para leitores despreparados, Clarice Lispector não oferece textos fáceis de tragar, agradáveis de ler, por sentirem-se eles perdidos até mesmo em meio a um relato de fatos cotidianos, pois estes podem inesperadamente desorientá-los. É o contato com a coisa? Talvez. Disse na sua última entrevista que ela não se considerava popular e até era vista como hermética; por estas dificuldades a sua obra literária está, na maioria das vezes, entregue aos doutores e professores de literatura, o que pode tornar sua leitura um tanto elitista – infelizmente. Não acho que ela tenha escrito seus livros visando este fim – ela escreveu por necessidade, o seu modo de ser se espelha de forma sincera na sua expressão – e a maior ou menor, ou mesmo nenhuma aproximação do leitor com seus textos é independente do nível intelectual: ou se entra em contato com ela ou não.
As categorias de bem e de mal se contrapõem marcadamente em casos como o de Mineirinho; é muito fácil julgá-lo só levando em conta o seu lado escuro, demoníaco e assim não lhe conceder nem defesa, nem perdão, por isso é incabível, lato sensu, aceitar argumentos tais como – Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Ou: Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. Ou ainda: Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou … – sem beirar a culpa, o exagero e até mesmo o utópico. Contudo Clarice Lispector chegou aí – à doidice? À utopia? Ao ilimitado? Ao limiar do impossível dentro do possível? Como entendê-la? Ela disse que quem entende desorganiza e é o mesmo que querer entender a coisa que nos faz com que nos ofusquemos e nos calemos tanto frente a um brilhante, como frente ao horror, pois essa mesma coisa que nos enche de amor, também nos desespera e faz nossa casa estremecer, mas é bom lembrar que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Então seria possível sim.