Imóvel como uma rainha no seu trono, as luzes refletiam sobre a sua cabeça majestosa, ” à la Black Power”, dando-lhe cores cintilantes entre o azul e o rosa. Os lábios cobertos por uma cor escura, bem pintados, salientavam uma expressão altiva de “femme fatale”; as mãos e os braços enluvados por um material brilhante – latex? – ela movia com cuidado só a mão que segurava o microfone. Séria, imponente, nos seus quase 80 anos de idade, assim encontrei a Elza Soares no palco, cantando sentada, a voz já gastada, sem os gritos rasgados de antes, quando ela já deixava louco o Brasil com o seu gingado. Lá no palco a vi como uma soma de presenças fortes: como uma política, uma dominadora, uma ativista … no entanto era só ela, a Elza sentada e cantando, exuberante, como disse o Lenine.
Este show fora do Brasil levou muitos brasileiros, como eu fora do país, a querer reviver o que faz parte do nosso patrimônio cultural – a música, a nossa MPB, o samba – e Elza Soares é uma divulgadora deste patrimônio, mas não só isto, ela é a voz negra, gritante e acusadora, que não deixa escapar a verdade – uma verdade cruel, mas que também encoraja o público a cantar repetidas vezes até que o refrão fique na memória de cada um como emblema de uma denúncia:
“ A carne mais barata do mercado é a carne negra / A minha carne é negra.”
Senti-me orgulhosa por estar no seu show, vê-la com respeito e admirá-la. Lembrei-me de que a minha mãe não gostava da Elza porque não a considerava uma mulher respeitável pelo fato de ter ido viver com Mané Garrincha – homem casado – e de ter destruído uma família. Eu ainda não tinha dez anos na época, minha mãe estava na faixa dos quarenta e mesmo com todo o seu conservadorismo e noção de pecado, ela não podia criticar o Garrincha por ter saído de casa, mas sim a Elza, como causadora do escândalo. Mulheres como a Elza Soares em experiências similares também sofreram acusações e insultos de forma unilateral, pois as convenções da sociedade por essa altura consistiam em não criticar o homem, não tocá-lo como guardador da tradição; à mulher, porém, não se evitavam as críticas, pois ela era o motivo de ele ter ferido essa tradição, o que no fundo a culpa era dela. Isto explica que a separação entre os papéis na sociedade, onde o lugar do homem visto como provedor era incólume às censuras, tendo a liberdade de poder dar escapadas fora do matrimônio, ficando assim tolerada a infidelidade masculina, mas nunca a da mulher por ser motivo de preconceitos e passá-la imediatamente a receber a insígnia de puta, não só de homens, como também de outras mulheres.
Mulheres contra mulheres quando estas quebravam convenções de uma herança cultural que lhes impunham aceitar, menos os determinados modos de guardar a dignidade, mas muito mais o peso de suportar o destino de ser mulher. Era dramático, mas apesar disso era o modo de minha mãe (a minha mãe aqui é só um exemplo para ilustrar o quadro da época) entender o seu lugar de mulher na sociedade, em vez de conceder apoio moral. Também o senso moral, contudo, que vincula as pessoas às suas causas não era de se esperar de uma sociedade já quase sucumbida no conservadorismo de uma ditadura, como a brasileira nos anos sessenta. Apesar de ter criticado a Elza Soares, acho que bem no fundo, minha mãe sentia-se solidária a ela, por ser mulher e poder compreender seu sofrimento, mas nunca defendê-la, pois isto supunha ter tido coragem de eleger a expressão em vez de calar-se – e isto era perigoso – como também proibido? – Pois sim, nesta época a maioria das mulheres não pôde chegar a tanto, por não estarem ligadas pela responsabilidade social e os mesmos interesses. O silêncio ainda não tinha sido quebrado dando lugar à expressão e a solidariedade, muito mais, fazendo dessa experiência uma atitude política. Nem por isso culpo a minha mãe por não ter sido mais forte e corajosa, pelo contrário posso compreendê-la e aceitar suas restrições que também foram as restrições de minha avó, de suas irmãs, de suas primas, de suas conhecidas, etc., etc..
Hoje ainda me pergunto até que ponto isso é coisa do passado? Certamente que sim. Assevero que sim. Levando em conta quando Elza e Garrincha começaram a ter uma relação – melhor do que a expressão “ter um caso” – em 1962, isto já faz 54 anos, ou seja, entre três ou quatro gerações estão formadas de lá para cá. Já superamos os séculos retrógrados de antes, quando o casamento era mais uma necessidade da mulher para não ficar solteira e a de ter um homem que a sustentasse em troca de dar-lhe filhos e conforto familiar. Esta estabilidade material era melhor do que ser vista socialmente como uma pessoa inútil e ser tratada com desdém por ter ficado sem casar. As mães instruíam as filhas para a vida sexual: “feche os olhos e não imponha resistência, com o tempo você se acostumará e não será mais penoso”. Abnegação ou uma chance ao desfrute? No fundo é uma forma de procurar o amor fora da regulamentação familiar pelo matrimônio e homens aproveitaram-se muito bem dessa brecha para o seu próprio bem-estar, passando a viver o amor de duas formas, uma dentro da relação oficial e a outra fora dela. Uma solução prática, mas cheia de hipocrisia e descaro que, infelizmente, ainda funciona.
Garrincha encontrou outra solução e casou-se com a Elza que ainda foi alvo de críticas, mesmo já estando casada com ele. Por que ainda a discriminação? No fundo ele foi o infiel e o que abandonou a família. É que a sociedade daquela época não estava esclarecida o suficiente para saber julgar formas de infidelidade masculina com o aparato da psicologia, como temos hoje, e isto é muito bom.
Excellente nota.
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A simples síntese dos tempos de consumo exagerado de um mundo vazio de sentimentos causador da sociedade líquida… em que tudo se esvai estantaneamente pelo ralo das imposições das festas de fim de ano!
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